sexta-feira, abril 22, 2022

Nos 50 anos de Uma Abelha na Chuva

Laura Soveral e João Guedes filmados por Fernando Lopes:
corpos e fantasmas

O filme de Fernando Lopes, baseado no romance de Carlos de Oliveira, remete-nos para um passado que se refaz na visão do presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 abril).

Fernando Lopes
Há 50 anos, mais exactamente no dia 13 de abril de 1972, ocorreu a estreia do filme Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes. Foi no cinema Estúdio, pequena sala do chamado circuito de Arte e Ensaio que integrava o majestoso edifício do cinema Império, uma das maiores salas de Lisboa, a par do Monumental e do Eden.
Meio século passado, a nostalgia não basta. Pode até ser má conselheira. Importa relembrar — e, a meu ver, celebrar — a perturbação artística e política gerada pelo filme de Fernando Lopes, perguntando: que é feito da herança do Cinema Novo português?
Será que a prática e, antes disso, o desejo de novas linguagens — apelando à inteligência dos espectadores e respeitando a complexidade do mundo — persiste na produção e no mercado de 2022? Haverá herdeiros desse desejo que continuam a filmar? E estarão esses herdeiros a saber e conseguir partilhar com os novos espectadores os valores de um cinema que resista à cultura consumista, aos clichés mediáticos e à agressiva formatação de imagens e sons?
As respostas são, de uma só vez, positivas e negativas. Positivas porque não se perdeu o legado de autores como Fernando Lopes (1936-2012), Paulo Rocha (1935-2012) ou Alberto Seixas Santos (1936-2016) — sem esquecer, claro, Manoel de Oliveira (1908-2015), por assim dizer ainda mais novo que o Cinema Novo. Negativas porque os poderes mais fortes, da produção ao marketing, passaram a estar do lado de um outro cinema, tele-dependente, subsidiário da mediocridade “novelesca” que algumas linguagens impuseram como modelo (supostamente) natural.
As interrogações e desafios que Uma Abelha na Chuva transportava não eram, obviamente, exclusivo do trabalho de Fernando Lopes, nem sequer do cinema português. Desde logo, porque o Cinema Novo pontuara de forma decisiva a década de 60, ecoando as convulsões temáticas e estéticas vividas em contextos muito diversos (a começar, claro pela Nova Vaga, em França). Depois, porque Uma Abelha na Chuva era também um reflexo de uma obsessão muito portuguesa, condensada numa pergunta latente: como filmar o que somos e como somos? Como contraponto, podemos recordar, num registo bem diferente, mas igualmente marcante, o filme Perdido por Cem, de António-Pedro Vasconcelos, lançado um ano mais tarde (recentemente editado em DVD pela Academia Portuguesa de Cinema). Curiosamente, por essa altura, Fernando Lopes e António-Pedro Vasconcelos, eram personalidades decisivas no reaparecimento da revista Cinéfilo, o primeiro como director, o segundo como chefe de redacção.
O romance de Carlos de Oliveira em que Uma Abelha na Chuva se baseia, por certo uma das obras-primas da literatura portuguesa do século XX (disponível, por exemplo, numa edição de bolso: “Colecção Miniatura”, Livros do Brasil), talvez se possa resumir como um decisivo momento de ruptura no imaginário neo-realista: mantendo-se ligado ao seu programa simbólico, ao mesmo tempo estilhaçando as matrizes da sua escrita. Logo no primeiro capítulo, os lugares surgem assombrados por um realismo que, de modo irreversível, discute as suas próprias fronteiras: “Havia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia o rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro até se condensar num côncavo alto e tempestuoso.”
A adaptação que sustenta o filme (da responsabilidade do próprio realizador) decorre de um corte com qualquer determinismo naturalista que pudesse contaminar a encenação daquele mundo rural. O par que ocupa o centro da tragédia — Laura Soveral e João Guedes — existe, assim, como uma entidade de perturbante simbolismo, como se a vibração dos corpos os empurrasse para um teatro de fantasmas.
Certamente não por acaso, há uma cena de uma representação teatral do Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, que abre o filme para uma narrativa de sucessivos assombramentos. Mestre da montagem, Fernando Lopes expunha uma ferida muito portuguesa, de um narcisismo ambíguo, porventura intemporal: a de um destino enredado no seu silêncio. Um pouco como num poema de Carlos de Oliveira publicado em 1977: “Rodar a chave do poema / e fecharmo-nos no seu fulgor / por sobre o vale glaciar. Reler / o frio recordado.”