sexta-feira, abril 29, 2022

Que cinema histórico?
— a propósito de
Salgueiro Maia - O Implicado

Salgueiro Maia - O Implicado faz o retrato de uma figura central nos acontecimentos do dia 25 de abril de 1974; infelizmente, o filme não consegue superar os limites de um cinema “ilustrativo”, enraizado numa linguagem académica de televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 abril).

Em 1972, aquando do lançamento do seu penúltimo filme (o assombroso Frenzy, entre nós estreado como Perigo na Noite), Alfred Hitchcock definiu uma fronteira conceptual que rasga o pensamento do cinema em dois territórios estranhos entre si. Questionado sobre a atenção que prestava às críticas aos seus filmes, reconheceu que, na maior parte dos casos, o desiludiam. Porquê? Porque apenas descreviam o “conteúdo” (content), ignorando o “tratamento” (treatment). Hitchcock distinguia, assim, a mera inventariação dos factos narrados da respectiva abordagem através dos meios específicos do cinema: um filme não se define pelos factos que encena ou evoca, mas, justamente, pelo seu trabalho narrativo.
No nosso presente, há um impulso “culturalmente correcto” que normalizou tal simplismo: confundir um filme com os factos coligidos na sua sinopse já não é apenas o estilo de algumas variantes da crítica de cinema; passou a ser também um modelo de organização de muitos filmes. Assim acontece com Salgueiro Maia - O Implicado, de Sérgio Graciano, objecto típico de um cinema “ilustrativo”, enraizado numa linguagem académica de televisão, em que a importância simbólica dos factos evocados é tratada como uma proeza de revelação. A frase promocional reflecte essa ideologia do “desvendamento”: “A história nunca antes contada do herói de abril.”

Que epopeia?

O assunto afigura-se tanto mais delicado quanto Salgueiro Maia - O Implicado é apenas um pormenor no interior de uma dinâmica ideológica que adquiriu um poder imenso na sociedade portuguesa e na forma como partilhamos (ou julgamos partilhar) as convulsões da história colectiva, a começar pelas memórias do dia 25 de abril de 1974.
A encenação “obrigatória” do 25 de abril como epopeia redentora, quase religiosa, acontece quase sempre através de um misto de apagamento e demonização de tudo o que vivemos até ao dia 24 de abril do mesmo ano. Como se a celebração da democracia “obrigasse” a que o fascismo português seja reduzido a uma coleção de anedotas mais ou menos ridículas — será essa uma maneira inteligente de viver e pensar a democracia?
Sintomático é o tratamento em tom de caricatura grosseira de duas personagens de militares que não estavam com o Movimento das Forças Armadas: o pai do colega de Salgueiro Maia a cuja casa vão jantar e o oficial com que o próprio Salgueiro Maia se confronta na rua (interpretados por Miguel Borges e Paulo Calatré, respectivamente). É, no mínimo, bizarro que a lógica ditatorial do Estado Novo — e dos militares ao seu serviço — seja “exposta” através de figuras que apenas existem como patéticas marionetas.
Insisto: a questão excede o filme, o filme apenas a ilustra. E poderá mesmo levar alguns a perguntar se se trata de duvidar da seriedade de quem vem celebrar o triunfo da democracia e, neste caso particular, a importância estratégica e a dignidade humana de uma figura como Salgueiro Maia. Colocar a questão desse modo é, afinal, confirmar o vício descritivo apontado por Hitchcock — como se o “conteúdo” dispensasse qualquer reflexão sobre o “tratamento”.
Que encontramos, então, em Salgueiro Maia - O Implicado? Tão só um conceito teleológico da história: como personagem do filme, Salgueiro Maia é alguém que se limita a agir para ilustrar um destino antecipadamente traçado (pelo imaginário histórico que se quer satisfazer). Cedo se compreende, aliás, que o ziguezague temporal da acção, antes e depois do 25 de abril, entre o público e o privado, não passa de um tique “modernista” sem qualquer motivação dramática ou fundamento dramatúrgico.

Que cinema?

Mas não seria legítimo fazer um filme que apostasse menos na complexidade da história e mais na vocação mitológica dos seus heróis? Claro que sim. Sem esquecer dois aspectos: primeiro, seria necessário sustentar o conceito de heroísmo como algo mais do que uma imitação da iconografia que as repetições televisivas transformaram em imagens de marca (exemplo: as cenas do Largo do Carmo são pueris derivações de tais imagens); segundo, a dimensão mitológica exige um sentido de espectáculo e uma vibração formal que Salgueiro Maia - O Implicado nunca possui (a herança de autores como o americano Cecil B. DeMille ou o francês Sacha Guitry poderá ajudar a separar as águas).
É pena que a boa vontade de um projecto como Salgueiro Maia - O Implicado acabe por desbaratar uma base técnica que, como se prova, superou as limitações que, durante décadas, assombraram a produção de cinema em Portugal. Até porque podemos perceber que, no plano da interpretação, a formatação “novelesca” não destruiu talentos como o protagonista Tomás Alves, José Condessa ou, em particular, Filipa Areosa, intérprete da mulher de Salgueiro Maia, que consegue alguns fogachos de genuína emoção, contrariando a debilidade dramática das suas cenas. É “apenas um filme”, como diria também Hitchcock, mas falta-lhe querer ser mais filme e menos estereótipo.