sábado, fevereiro 05, 2022

A lição de Lucille Ball

Lucille Ball / Nicole Kidman

A evocação da série televisiva I Love Lucy por Aaron Sorkin é, afinal, um filme raro sobre o trabalho. Com uma admirável Nicole Kidman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 janeiro).

Lucille Ball — americana, nascida em 1911, em Jamestown, Nova Iorque; falecida em 1989, em Los Angeles. Eis um nome que há muito deixou de fazer parte da actualidade do imaginário cinematográfico. Desde logo por uma evidente questão de identidade artística: ainda que com uma considerável carreira cinematográfica, ela foi, sobretudo, um fenómeno televisivo, através da série I Love Lucy (1951-57). Depois porque o actual marketing do cinema perverteu as leis do star system, promovendo, não actores humanos, mas “personagens” mais ou menos digitais, quase sempre ligadas às aventuras de super-heróis.
O prodigioso filme Being the Ricardos, escrito e realizado por Aaron Sorkin (estreado na Prime Video, com o subtítulo português Os Ricardos) revisita memórias de Lucille Ball e do seu marido, nascido em Cuba, Desi Arnaz (1917-1986), quando interpretavam Lucy e Ricky Ricardo, o casal de I Love Lucy. Foi um dos maiores fenómenos de toda a história da televisão nos EUA: em 2021, de acordo com dados da YouGov (empresa britânica de investigação e estatística de mercados), ocupava o sexto lugar no Top 100 das séries mais populares de sempre.
O filme apresenta-se, antes do mais, como uma admirável variação sobre o jogo de complementaridades e conflitos entre “vida vivida” e “vida representada”. Com uma componente dramática muito particular: a acção tem lugar em 1953, acompanhando uma semana de trabalho de um episódio de I Love Lucy, da leitura dos diálogos até ao registo final em estúdio, com cerca de duas centenas de espectadores a assistir.
Tudo acontece numa conjuntura social e política muito específica, com o argumento do filme a concentrar naqueles dias uma série de eventos que, de facto, tiveram lugar ao longo de mais de dois anos (o episódio em causa, Fred and Ethel Fight, foi filmado em fevereiro de 1952, tendo sido emitido no mês seguinte). O que realmente aconteceu em 1953 foi algo que abalou seriamente a imagem pública de Lucille Ball: em setembro desse ano, Walter Winchell, especialista em “escândalos”, utilizou o seu programa de rádio para denunciar o facto de, nos anos 30, ela ter sido filiada no Partido Comunista. Ponto importante de contextualização: o pano de fundo é um período negro da história política dos EUA, quando a “caça às bruxas” conduzida pelo senador Joseph McCarthy levou à marginalização compulsiva de muitos profissionais de Hollywood.
Na verdade, tudo isto está longe de se cingir aos modelos correntes de “reconstituição histórica” (frequentes em séries do streaming). E não apenas por causa da condensação temporal a que obedece o labor ficcional do filme. Não estamos perante a vulgar acumulação de guarda-roupa e adereços de uma determinada época que se combinam com diálogos mais ou menos “informativos” em que as personagens falam como se fossem “encarnações” dramáticas da Wikipedia. Nada disso. Claro que estão lá todas as tensões decorrentes da caça aos “vermelhos” em Hollywood. Mais do que isso: o filme não esconde o facto de Lucille Ball se reconhecer na herança ideológica do seu pai como “defensor dos trabalhadores”. Em todo o caso, o motor dramático do filme, ironicamente ou não, é o trabalho.
O empenho de Lucille Ball em corrigir as marcações e os ritmos de uma determinada cena do episódio que está a ser filmado constitui mesmo um dos elementos decisivos na estrutura narrativa de Being the Ricardos. Ao contrário do cliché (cinematográfico e televisivo) da star que se destaca num determinado universo ficcional, quase ignorando a existência de todos os outros elementos humanos e também o respectivo enquadramento técnico, a Lucille Ball de Aaron Sorkin é uma mulher com uma consciência militante do trabalho — o seu e o dos outros.
Ela define assim os seus trunfos e limites: “A cara, o corpo e a voz são tudo o que tenho para trabalhar.” Mais do que isso: o seu modo de trabalhar envolve sempre o questionamento pedagógico dos efeitos que cada movimento, pausa ou silêncio pode desencadear no espectador. Num confronto com o chefe dos argumentistas da série, que lhe diz que ninguém vai perceber a falha narrativa que Lucille Ball insiste em emendar, ela responde-lhe: “Estás a dizer que o público é estúpido. E não te vão perdoar por isso.”
Para que tudo isto aconteça cinematograficamente, escusado será dizer que o trabalho dos actores é fundamental, a começar pelo facto de Javier Bardem compor um Desi Arnaz que existe para lá do cliché “sociológico” do refugiado cubano que, para o melhor ou para o pior, sempre o acompanhou. Depois, há na representação de Lucille Ball por Nicole Kidman a precisão fascinante de quem vive em ziguezague entre a ligeireza da sua imagem pública e a consciência muito aguda do seu talento e do modo como a sua trajectória cinematográfica foi sendo condicionada por opções dos estúdios — veja-se a cena cruel em que é despedida da RKO pelo respectivo presidente, Charles Koerner, que lhe diz que já têm… Rita Hayworth.
Na primeira cena em privado de Lucille e Desi, ainda antes do seu casamento, podemos pressentir o elemento que, afinal, determina todos os actos de Lucille Ball: ela quer ter um “lar”. Quando o diz, usando a palavra “home”, Desi interpreta-a como se fosse um retiro para idosos. “Vivo numa casa pequena”, diz ela, o que leva Desi a uma dedução meramente quantitativa: “A tua ambição é viver numa casa maior.”. Ela corrige: “A minha ambição é viver num lar.” Confundido, Desi pergunta: “Como os das pessoas mais velhas?”. Não, não se trata de uma instituição, mas de um outro tipo de lar: “Com uma família e hora de jantar.” No plano mitológico, reencontramos, assim, um desejo visceralmente americano. Na discreta comoção de tão cristalinas palavras, nada poderia ser mais universal.