segunda-feira, janeiro 24, 2022

Memórias e utopia de Rodrigo Areias

Acácio de Almeida em Cinema/Vencidos da Vida

Rodrigo Areias percorre momentos emblemáticos da sua filmografia, construindo um filme que celebra o cinema e o desejo de filmar: Vencidos da Vida está nos TVCine — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 janeiro).

De que se faz o território particular de um cineasta? E, sobretudo, como é que esse território se define e auto-define? Ou ainda: como é que o cineasta desenha o seu próprio mapa?
Em boa verdade, a evolução de qualquer filmografia pessoal vai respondendo a tais questões: cada nova obra existe como uma forma de refazer, porventura expandir, negar ou renegar, a paisagem criativa do autor. Por vezes, isso acontece até num tom em que pedagogia rima com ironia — lembro o delicioso exemplo de Entrevista (1987), de Federico Fellini, com o autor de La Dolce Vita a “inventar” uma entrevista com uma equipa da televisão japonesa, num jogo de escondidas em que Fellini brinca com a percepção corrente do seu trabalho. Outras vezes, a memória privada confunde-se com a dramatização da identidade cinematográfica — veja-se o belíssimo JLG por JLG (1994), de Jean-Luc Godard.
Rodrigo Areias apostou num registo bem diferente, encarando a sua memória criativa como um auto-retrato em forma de “puzzle” aberto a inesperadas (re)configurações. O seu filme Vencidos da Vida (TVCine) funciona, assim, como uma colagem de fragmentos de vários títulos da sua filmografia, incluindo Corrente (melhor curta-metragem portuguesa e prémio do público no Curtas Vila do Conde de 2008), Golias (2010), Cinema (2014), Pixel Frio (2018), etc.
Obviamente, o título escolhido está longe de ser indiferente, cruzando simbolicamente o filme com as memórias a Geração de 70 das décadas finais do século XIX português (Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, etc.). Reunidos regularmente sob a designação de “Vencidos da Vida”, o grupo corporizou um lema enunciado por Eça e evocado nas notas de produção do filme: “Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirava.”
Dir-se-ia que Rodrigo Areias apostou numa sedutora ambivalência: há um saldo de desencanto nas imagens e sons agora coligidos, como se neles houvesse (e há!) um desejo de utopia que a história não cumpriu; ao mesmo tempo, esse desencanto coexiste com uma obstinada alegria de filmar a que, à falta de melhor, daremos o nome de felicidade artística.
Viajamos, assim, por experiências narrativas que vão desde o realismo (quase) expressionista de Corrente até ao ritual intimista de Pixel Frio. De qualquer modo, é a curta-metragem Cinema, protagonizada por uma personalidade maior da história do cinema português — o director de fotografia Acácio de Almeida — que emerge como “guia” de Vencidos da Vida. Aí descobrimos a tristeza das ruínas de uma sala emblemática de Guimarães, o Teatro Jordão (actualmente, em processo de reconstrução). Tudo se passa como se essa consciência amarga da emoção primitiva do cinema se tivesse tornado um bem precioso que importa preservar, não como objecto museológico, antes como visão e atitude que as novas gerações podem (e devem) conhecer.