segunda-feira, abril 03, 2017

O cinema segundo Rodrigo Areias

Rodrigo Areias é um caso exemplar de um produtor/criador que mantém uma estratégia coerente, descentralizada e descentralizadora — esta coluna de opinião, motivada pela estreia de Ornamento & Crime, foi publicada no Diário de Notícias (1 Abril), com o título 'Este mundo e o outro', a par de uma entrevista conduzida por Inês N. Lourenço.

Ao descobrir o filme Ornamento & Crime, permito-me recordar que trabalhei com Rodrigo Areias na área de cinema (programação e produção) de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Aprendi com ele a respeitar uma regra muito simples: os filmes, “”bons” ou “maus”, distinguem-se pela vontade de construir um mundo novo dentro do mundo a que chamamos nosso. Há em tal visão um misto de objectividade e ironia: por um lado, reconhecemos que o filme, enquanto objecto “fotográfico”, nos faz reconhecer sinais e gestos da vida à nossa volta; por outro lado, tudo o que nele investimos — em nome do nosso desejo de filmar — faz com que o próprio filme se liberte de qualquer dependência “imitativa”, transfigurando-se num objecto com vida própria.
Ornamento & Crime é isso mesmo. Vejo nele marcas físicas e simbólicas de Guimarães que não são estranhas a uma emoção que, em boa verdade, não sei como partilhar. Mas vejo também um gesto de cinefilia de contundente actualidade conceptual e artística: esta história de uma investigação policial em terreno minado por interesses económicos pouco transparentes é, de uma só vez, uma celebração e um requiem. Celebração de uma cidade concreta que preserva a liberdade da imaginação e abstracção através das memórias do arquitecto Fernando Távora. Requiem por um cinema que não esquece a utopia de uma arte popular tecida de sonhos e pesadelos registados em austero preto e branco (grande trabalho de direcção fotográfica de Jorge Quintela).
Daí a insólita e envolvente mensagem: Rodrigo Areias encena um mundo nostálgico de todas as formas de heroísmo e romantismo, ao mesmo tempo que apresenta as suas personagens como marionetas de um destino que as transcende. Que o cinema ainda seja palco desta amargura feliz, eis o que importa partilhar.