quarta-feira, setembro 08, 2021

Edgar Morin
— o filósofo selvagem [3/3]

Edgar Morin, por Yann Legendre
Le Monde

Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).

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No dia do seu 100º aniversário, Morin publicou no jornal Le Monde um artigo intitulado “Na torrente do século”. Dir-se-ia uma variação ou resumo do “século de vida” referido no título do seu livro. Mas não só: a sua reflexão é eminentemente prospectiva, apostando em identificar os desafios radicais de uma humanidade assombrada pelo Covid-19.
Para Morin, importa continuar a pensar a partir de uma atitude transdisciplinar, integrando contributos de todos os domínios de conhecimento, enfrentando a pluralidade dos acontecimentos históricos, afinal mantendo a postura que ele próprio define como fulcral na sua obra monumental, em seis volumes, La Méthode (Le Seuil, 1977-2004). O terceiro volume possui um título sintomático dessa exigência de permanente discussão do próprio acto de conhecer o mundo à nossa volta: “O conhecimento do conhecimento”.
Morin faz o inventário de alguns momentos a que atribui um peso decisivo no momento global que vivemos, a começar pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima, em 1945, expressão de uma “potência” de destruição que ameaça reduzir-nos à “impotência”. Refere depois o chamado Relatório Meadows, documento publicado pelo Clube de Roma, em 1972, “advertindo a humanidade para o processo de degradação do planeta, tanto na biosfera como na socio-esfera” — recorde-se que o título integral desse documento era “Os Limites do Crescimento (num Mundo Finito)”. Destaca ainda, em 1989-1990, “a invasão do capitalismo na ex-União Soviética e na China comunista”, ao mesmo tempo que, de modo espectacular, eclodiam — e passávamos a usar — os “meios de comunicação imediata.”
É na sequência de tudo isto que surge “a crise provocada pela pandemia do Covid-19”, revelando “a fraqueza de uma ciência que considerávamos toda poderosa”. Descobrimo-nos, assim, na encruzilhada provocada por “um vírus de que podemos analisar as moléculas constitutivas”, embora continuando a ignorar a sua origem, “talvez produto microscópico que escapou a um doutor Frankenstein chinês…”
Mas a cedência a uma qualquer teoria da conspiração não nos salva: há especulações bastante mais consistentes que nos alertam para os dramas potenciais do futuro próximo: “Saberemos mais tarde se a pesquisa de vacinas não desacelerou a pesquisa de remédios, se alguns remédios não foram secundarizados sob pressão de poderosas companhias farmacêuticas, influenciando as autoridades de saúde.”
Podemos descrever o seu pensamento da conjuntura pandémica como um movimento de aproximação e recuo (dialéctico, sem dúvida) face às componentes científicas do nosso mundo. Porquê? Porque, como Morin argumenta na entrevista citada, o progresso técnico não pode ser encarado como um evangelho redentor: “Quanto mais o mundo é técnico, maior é o risco de acidente.”
Morin recorda, em particular, os ensinamentos colhidos nos EUA, na década de 60, em plena “contra-cultura”, junto de Heinz von Foerster (1911-2002), o cientista austríaco habitualmente identificado como fundador da “segunda cibernética”. Segundo ele, os humanos são “máquinas não triviais”, diferentes das que são geradas pelo progresso técnico: “A máquina trivial é a máquina artificial, por nós fabricada e da qual conhecemos o comportamento a partir dos programas que a comandam.” Ora, porque as sociedades humanas não são máquinas triviais, importa reagir contra a acção dos tecnocratas que “acreditam que uma sociedade de algoritmos gerados pela inteligência artificial representaria um progresso harmonioso, quando, de facto, seria opressiva, para não dizer asfixiante.”
Nesta perspectiva, a herança do filme Chronique d’un Été mantém uma perturbante e cristalina actualidade. Logo na cena de abertura, tal como Rouch e Morin explicam a Marceline Loridan (figura fundamental do universo do documentarista Joris Ivens), trata-se de questionar o nosso viver social, começando “apenas” por perguntar a cada um dos inquiridos “como é a sua vida”. E também: o que cada um “faz com a sua vida”.
Não há nada mais político: as ideias que formamos sobre o modo como vivemos definem, determinam e fazem evoluir a nossa pertença a uma determinada realidade social. No caso de Morin, para lá da experiência política e da investigação antropológica, a literatura (Dostoievski, Proust, etc.) sempre foi determinante no movimento de tais ideias. Daí o auto-retrato muito didáctico que ele faz no Philosophie Magazine: “Sou um filósofo selvagem, não sou um filósofo profissional.”