Ao completar 100 anos de vida, Edgar Morin publicou um livro sobre as “lições de um século de vida”, viajando por caminhos plurais, da investigação antropológica à recusa de uma sociedade regida por algoritmos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 agosto).
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Escusado será dizer que a consciência da pluralidade humana se espelha na imensidão das obras de Morin (que este texto não pretende sequer sugerir), salvaguardando sempre o labor de contínua redescoberta que alimenta essa consciência — é uma forma intransigente de humanismo. Assim, a palavra “complexidade” pontua todas as actividades de Morin, conduzindo-o da militância politicamente enquadrada à afirmação de um individualismo aberto às diferenças dos outros.
O seu envolvimento com o Partido Comunista é revelador: militante a partir de 1941, em contexto de resistência ao nazismo, acabou por se distanciar do respectivo aparelho através da denúncia dos crimes estalinistas, sendo expulso em 1951. Daí a leitura, também ela “complexa”, das heranças juvenis: “As transformações decorrentes da idade e da experiência não são necessariamente conquistas de lucidez. Assim, muitos comunistas, maoístas e trotskistas desiludidos converteram-se ao nacionalismo xenófobo ou à religião da sua infância. No que me diz respeito, conservando as minhas aspirações de juventude, rejeitando definitivamente as lógicas sectárias, converti-me à autonomia política total.”
Há, por isso, em Morin um “duplo imperativo complementar do Eu e do Nós” que pode levar cada ser humano a oscilar, com maior ou menor felicidade, “do individualismo ao comunitarismo, do egoísmo ao altruísmo”. Curiosamente, tal dinâmica encontraria uma forma exemplar de expressão nas relações de Morin com a experimentação cinematográfica.
O cinema não ocupa um lugar dominante na escrita de Morin, mas é um facto que ele é autor de um dos clássicos absolutos da literatura cinematográfica do século XX: O Cinema ou o Homem Imaginário, publicado em 1956 (disponível no mercado português numa magnífica tradução de António-Pedro Vasconcelos, com chancela da Relógio d’Água). Aliás, o seu interesse pela dimensão “imaginária” dos filmes levou-o, um ano mais tarde, a escrever Les Stars (ed. Points).
Para Morin, o cinema foi uma continuação da investigação antropológica “por outros meios”. Em 1997, esclarecia esse ponto no prefácio a uma reedição de O Cinema ou o Homem Imaginário: (…) o estudo do cinema não foi um intervalo, um divertimento na minha bibliografia, apesar de corresponder a um período de refúgio. Fruto do acaso, acabou por ser absorvido pela necessidade. Ao estudar o cinema, não estudei apenas o cinema: continuei a estudar o homem imaginário. Além do mais, considero o cinema, não como um objecto periférico, acessório, ou mesmo risível (os meus colegas riam-se quando eu lhes dizia que ia “trabalhar” no cinema), mas como um objecto privilegiado para uma antropo-sociologia séria, porque coloca um nó górdio de questões fundamentais.” Ou ainda, dito de forma poética — celebrando a “poesia” que ele exalta no seu livro mais recente —, tudo se passa “como se o cinema exprimisse a música implícita, a música subentendida das coisas.”
A esse propósito, convém não esquecer que, na companhia de Jean Rouch, Morin é co-autor do filme Chronique d’un Été (1961), marco simbólico na afirmação da Nova Vaga francesa, tradicionalmente apontado como matriz do chamado “cinema-verdade”. A sua “reportagem” sobre o dia a dia de diversas personagens — com Rouch e Morin, no final, a discutirem os prós e contras do próprio projecto — explora uma duplicidade essencial: até que ponto sabemos dizer e explicar a vida que vivemos? Ou ainda: como é que a irredutível identidade de cada um “encaixa” nos valores do colectivo em que vivemos?