A Mulher Casada (1964) |
No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'.
[ 1 ]
Foram tempos [no cinema francês] de genuínas revoluções formais e narrativas. A par dos companheiros da Nova Vaga — incluindo ainda autores como Eric Rohmer, Jacques Rivette ou Claude Chabrol —, Godard inspirava-se nos grandes mestres do classicismo europeu e americano para inventar surpreendentes formas de contar histórias, de alguma maneira desafiando o espectador para novas experiências, e diferentes prazeres, face a um ecrã de cinema.
Daí a imagem de marca de Godard como experimentador nato, capaz de conceber cada filme como um objecto susceptível de superar e até, no limite, desmentir as proezas do anterior. Depois de À Bout de Souffle, seguiram-se projectos tão diversos como Uma Mulher é uma Mulher (1961), celebrando a tradição da comédia musical, Viver a Sua Vida (1962), crónica social sobre a prostituição em Paris, e O Soldado das Sombras (1963), sobre a guerra da Argélia.
Há mesmo uma anedota clássica que define essa pulsão experimental. Assim, conta-se que, um dia, Godard terá sido questionado sobre as suas narrativas nada convencionais: afinal, os seus filmes tinham, ou não, “princípio, meio e fim”? A resposta, embora afirmativa, incluía uma pequena ressalva: “Sim, mas não necessariamente por essa ordem”…
Seja como for, a visão do mundo que perpassa em seis décadas de trabalho está longe de se esgotar num formalismo mais ou menos exuberante. A obstinada interrogação das formas — entenda-se: do modo de contar uma história — revela-se inseparável de uma ansiedade que, sendo estética, só pode ser compreendida através da sua sistemática atenção às grandes convulsões sociais e políticas.
Afinal, Godard e os seus “compagnons de route” são também herdeiros de Roberto Rossellini (1906-1977) e das convulsões do neo-realismo italiano. Para os neo-realistas, o estudo crítico do legado trágico da Segunda Guerra Mundial — de que Roma, Cidade Aberta (1945), de Rossellini, é o símbolo aglutinador — decorre de uma exigência humana e humanista que, no caso de Godard, se transfigurará em apaixonada desmontagem das ilusões e desilusões das novas formas de organização pública e privada. A saber: o sistema de valores e regras que cristalizou na chamada “sociedade de consumo”.
Títulos como o já citado Viver a Sua Vida, ou ainda A Mulher Casada (1964), sobre o novo enquadramento social da mulher, Masculino Feminino (1966), retratando os “filhos de Marx e da Coca-Cola”, e Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967), observando as consequências do crescimento urbano de Paris, reflectem uma preocupação eminentemente didáctica, de uma só vez prática e filosófica. Que é como quem diz: que significa vivermos, aqui e agora? Por alguma razão, Weekend/Fim de Semana (1967), desesperado conto moral sobre a mercantilização das relações humanas, estreado entre nós no inverno de 1974, é definido na sequência de abertura através de duas frases programáticas: primeiro, “um filme perdido no cosmos”; depois, “um filme encontrado no ferro-velho”.