domingo, dezembro 20, 2020

O ano em que Godard
fez 90 anos [1/4]

Jean-Luc Godard, À Bout de Souffle (1959)

No dia 3 de dezembro, Jean-Luc Godard celebrou 90 anos. Do cinema clássico à sedução das novas tecnologias, a sua obra de mais de seis décadas evolui em paralelo com as convulsões das sociedades: ele é um experimentador e, à sua maneira, um observador crítico das histórias individuais e colectivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias, com o título 'Godard, o louco'. 

Pergunta de algibeira: quem é o Mozart da história do cinema? Pergunta perversa, entenda-se, já que através da sua simples formulação podemos estar a alimentar esse velho preconceito que, encarando o cinema como uma arte descartável, exige que os seus valores sejam definidos, e até legitimados, através de referências vindas de outras artes. Em todo o caso, permito-me avançar com a minha resposta: Jean-Luc Godard. Acrescentando uma humilde mensagem de “joyeux anniversaire” — Godard nasceu em Paris, no dia 3 de dezembro de 1930, quer dizer, completa 90 anos na próxima quinta-feira [este texto foi publicado na edição de sábado, dia de 28 de Novembro]. 


Para os cinéfilos portugueses que começaram a frequentar as salas escuras nas décadas de 1950/60, o seu Pedro, o Louco (1965), com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina, impôs-se como uma referência tão mítica quanto etérea. Por um lado, exibia a assinatura de um lendário autor da Nova Vaga francesa; por outro lado, surgia como uma referência quase isolada desse movimento que tinha revolucionado o mapa do cinema europeu e, em boa verdade, mundial, despertando as energias criativas de novos cineastas dos mais variados contextos (incluindo Portugal). 
Por essa altura, Pedro, o Louco (título original: Pierrot le Fou) ficou como símbolo quase solitário de um cinema de muitas e arrojadas transformações. De tal modo que a revelação de alguns outros títulos emblemáticos da Nova Vaga, em particular de Godard, só viria a acontecer durante a contida liberalização do mercado ensaiada pelo governo de Marcelo Caetano, historicamente apelidada “Primavera Marcelista”. Assim, por exemplo, a primeira longa-metragem de Godard, o célebre À Bout de Souffle (1959), com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg, homenageando a tradição do filme “noir” de Hollywood, chegaria às salas portuguesas em meados de 1970, com o título O Acossado
À Bout de Souffle é mesmo tradicionalmente apontado como um dos títulos da trilogia de 1959 — completada por Os 400 Golpes, de François Truffaut, e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais — que inaugura a Nova Vaga. Recentemente, o seu 60º aniversário foi assinalado pelo lançamento de uma cópia restaurada 4K, com edição especial em Blu-ray.