Vencedor do BAFTA de melhor documentário, nomeado para o Oscar da mesma categoria, Para Sama é um impressionante registo da guerra da Síria e, em particular, da batalha de Aleppo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 fevereiro).
De que falamos quando falamos da guerra na Síria? Eis uma pergunta que nos conduz a outra, mais directa e, por assim dizer, mais social: o que sabemos da guerra da Síria quando vemos as imagens televisivas do conflito? Para Sama, por certo um dos mais extraordinários filmes documentais dos últimos anos, é um objecto que nos ajuda a lidar com os limites (televisivos, precisamente) do nosso conhecimento.
Entenda-se: não se trata de demonizar a informação televisiva, quanto mais não seja porque esse é um espaço em que podemos encontrar um pouco de tudo, desde os relatos sérios e fundamentados até à obscenidade dos que reduzem tudo, do futebol às epidemias, a um qualquer registo alarmista. Trata-se, isso sim, de recordar que há muitas matrizes fragmentárias dessa informação que, desde logo por causa da sua brevidade, tendem a diluir o conhecimento na “velocidade” compulsiva dos nossos circuitos de comunicação.
Creio que podemos dizer isto de outro modo: Para Sama é uma reportagem de uma cenário de guerra — a guerra civil na Síria e, mais concretamente, a batalha de Aleppo — e, ao mesmo tempo, um registo de delicado e comovente intimismo. Isto porque a Sama a que o título se refere é a filha da realizadora, Waad Al-Kateab, nascida em pleno conflito, no ano de 2015, personagem incauta de uma impressionante saga de sobrevivência.
Waad Al-Kateab é uma jornalista que se mudou para Aleppo, em 2009, contava 18 anos, para frequentar um curso de Economia. Com a eclosão da guerra civil, em 2011, começou a assinar reportagens para o Channel 4 (Reino Unido). Para Sama, co-realizado com o documentarista inglês Edward Watts, nasce da confluência de factores pessoais e profissionais: por um lado, o seu casamento e o nascimento de Sama; por outro lado, a opção de permanecer em Aleppo (até 2016, quando passou a viver no Reino Unido), registando uma odisseia de resistência e sobrevivência de que a frágil Sama acaba por ser o símbolo mais radioso e transparente.
Para além da intensidade do testemunho histórico e político, importa sublinhar a singularidade do objecto cinematográfico — e, por isso mesmo, a importância da sua difusão nas salas escuras. Num contexto de limitações tão inevitáveis quanto drásticas, filmar (literalmente, registar imagens e sons do que estava a ser vivido) decorre da urgência moral e política de não deixar rasurar a complexidade dos factos. Daí que Para Sama resulte da aplicação de recursos (desde uma pequena câmara de video até aos mais banais telemóveis) que envolvem uma obstinada lógica de sobrevivência. Dito de outro modo: sobreviver é também coleccionar testemunhos de uma existência que não abdica de um desejo de pacificação, logo de uma ideia de paz.
Bem sabemos que um filme (muitos filmes…) está longe de ser uma solução mágica para tudo o que de terrível tem marcado a história recente da Síria. Por isso mesmo, importa lembrar que aquilo que está em jogo envolve também um valor tão primitivo quanto fundamental. A saber: aplicar as matérias específicas do cinema como forma de partilha dos destinos humanos. Se a palavra humanismo não está esquecida na aceleração do nosso mundo de infinitos circuitos de informação, Para Sama pode simbolizar a sua insubstituível energia.