"Isto não é uma imagem justa, é apenas uma imagem" — ou a pedagogia do olhar no filme Os Ventos de Este (1970) |
A generalização do “video-árbitro” é um fenómeno cujo significado e efeitos transcendem o futebol. Na prática, passámos a aceitar que a complexidade do acto de olhar seja gerida por valores tecnológicos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Fevereiro).
Há poucas semanas, no final do jogo Southampton-Tottenham (1-0), José Mourinho fez algumas metódicas observações sobre o VAR que, a meu ver, não tiveram a ressonância que mereciam. Comentando a sua lógica (e não apenas naquele jogo), sublinhou o facto de o respectivo labor estar a desqualificar a acção do árbitro em campo. Sugeriu mesmo que a sua designação deveria excluir a palavra “assistente”, mudando de “video assistant referee” para “video referee” — isto é, “video-árbitro”.
Ironicamente, essa mesma designação, “video-árbitro”, é aquela que, desde o início da introdução da tecnologia do VAR, está consagrada em Portugal. Em todo o caso, não é minha intenção lidar com o assunto em termos irónicos. Porquê? Porque não me reconheço nos infinitos conflitos “clubísticos” que o VAR instalou no imaginário do futebol, aniquilando a própria noção de prazer associada ao consumo do jogo.
Trata-se de pensar para lá da justeza de um penalty ou do cartão vermelho que foi ou não foi mostrado… Creio que estamos a assistir à instalação de um novo estado conceptual das imagens. Dito de outro modo: creio que seria útil tomarmos consciência do poderoso efeito ideológico do VAR, não só na concepção e percepção das imagens do futebol, mas na própria existência social de todas as imagens.
Assistimos, assim, à generalização das imagens de uma nova ordem existencial. Ou melhor: uma nova ordem da existência através das imagens. Os factos deixam de ser encarados como ocorrências específicas, enredados na sua própria complexidade, muitas vezes indizíveis ou infilmáveis, para se apresentarem apenas como arranjos carentes. Carentes de quê? Pois bem, da própria caução com que a aparelhagem tecnológica os vem legitimar.
Este é o tempo em que vamos deixando que a tecnologia funcione como “Big Brother” de todos os nossos passos. Literalmente. Observe-se o exemplo benigno, mas sintomático, dos telemóveis que, mesmo sem intervenção do respectivo utilizador, medem os seus passos, propondo até regimes de gestão das nossas caminhadas: “Está a conseguir, em média, menos 1569 passos por dia esta semana do que na semana passada.” Como?
O “Big Brother” televisivo funcionou como terrível instrumento de naturalização deste estado de coisas, promovendo o olhar das câmaras como obscena maquinaria de espectáculo. Os respectivos criadores atreveram-se mesmo a instilar no imaginário social a ideia de que o espectáculo já não era… espectacular. Como sugeria a sua promoção, o “Big Brother” escapava a qualquer consideração moral porque se apresentava como a… “vida real”.
No caso do VAR, a gestão das imagens passou a impor até novas medidas do tempo. Quando assistimos a dois ou três minutos (por vezes, mais…) em que todos param dentro do campo, aguardando a palavra divina que há-de revelar-se no circuito de som do árbitro de campo, aquilo que triunfa está para além da noção legítima, mas limitada, de “verdade desportiva”. Desde os jogadores até aos espectadores caseiros, passando, claro, pelo público nas bancadas, somos todos reduzidos à condição de acólitos de uma nova religião das imagens.
Em 1970, num filme prodigioso chamado Le Vent d'Est [Os Ventos de Este], Jean-Luc Godard (na altura associado a Jean-Pierre Gorin, formando o chamado Grupo Dziga Vertov) apresentava um cartão com uma máxima cuja pertinência, meio século depois, apenas se reforçou: “Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image.” Jogava ele, como é obvio, com a ambivalência da palavra francesa “juste”, funcionando primeiro como adjectivo, depois como advérbio: “Isto não é uma imagem justa, é apenas uma imagem.”
Agora, todas as imagens estão obrigadas a ser “justas”, promovendo uma noção pueril de justiça. Perdemos o gosto de ver o real porque esquecemo-nos que ver é deparar com as fronteiras instáveis desse mesmo real. Na prática, estamos a esquecer a beleza, não só do que olhamos, mas do próprio acto de olhar.