sexta-feira, novembro 01, 2019

A poeira segundo Francis Bacon

FRANCIS BACON
Auto-retrato (1978)
A pintura de Francis Bacon deixou-nos um legado que envolve tanto de físico como de metafísico. No limite, ele ensina-nos a repensar o modo como olhamos para os nossos corpos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título 'Elogio da poeira'.

No espaço de poucos dias tive oportunidade de descobrir o maravilhoso filme de Woody Allen, Um Dia de Chuva em Nova Iorque, e revi a obra-prima de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now (também uma descoberta, já que se tratava da nova montagem, desta vez “final”, concebida por Coppola, entre nós apresentada pelo CCB).
O cruzamento dos dois filmes envolve uma personalidade que, de alguma maneira, os aproxima. De facto, as respectivas imagens têm assinatura do mesmo director de fotografia, o italiano Vittorio Storaro (nascido em Roma há 79 anos), um dos mestres absolutos da luz e da cor em toda a história do cinema.
Não será necessário lembrar muitos títulos para ilustrar o génio de Storaro. Bastarão, por certo, os três que lhe valeram outros tantos Óscares de melhor fotografia: Apocalypse Now foi o primeiro, seguindo-se Reds (1981), de Warren Beatty, e O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci. A colaboração com Bertolucci envolveu um total de nove filmes, de Antes da Revolução (1964), o único em que Storaro foi apenas assistente de imagem, a O Pequeno Buda (1993), passado por O Último Tango em Paris (1972) ou Um Chá no Deserto (1990).
No caso de O Último Tango em Paris, uma inspiração decisiva para o trabalho de Storaro foi a pintura do britânico Francis Bacon (1909-1992). Pela pluralidade dos seus castanhos, mas também pela abordagem dos corpos humanos. Bertolucci levou mesmo Marlon Brando a ver uma exposição de Bacon para lhe explicar como imaginava a personagem de Paul.
Era um princípio físico envolvido com uma hipótese metafísica. Segundo a ensaísta Claretta Micheletti Tonetti (The Cinema of Ambiguity, 1995), Bertolucci queria que Brando “se comparasse com as figuras humanas de Bacon porque sentia que, tal como essas figuras, o rosto e o corpo de Marlon se caracterizavam por uma plasticidade estranha e infernal.” Tal como uma figura de Bacon, Paul devia surgir com o “rosto devorado por algo que provém do interior.”
Que Brando seja o intérprete do coronel Kurtz em Apocalypse Now, eis uma “duplicação” de perturbante fascínio. Em boa verdade, o Kurtz inventado por Coppola a partir da novela de Joseph Conrad, O Coração das Trevas (publicada em 1902), é uma dessas figuras “devorada a partir do interior” que, no limite, desafia a identidade de quem dele se aproxima — é esse, justamente, o assombramento do capitão Willard (Martin Sheen), a caminho do reino dantesco de Kurtz.
Recentemente, o escritor e ensaísta francês Franck Maubert publicou um livrinho sobre a sua convivência, enquanto jornalista, com Bacon (Avec Bacon, Gallimard, 2019). Em pouco mais de uma centena de páginas, as suas memórias acrescentam uma nota de irresistível humor à vertigem que mobilizou Bertolucci, Storaro e Brando. Aliás, Maubert começa o livro lembrando que a primeira vez que viu um quadro de Bacon foi nos títulos de abertura de O Último Tango de Paris.
Delicioso é o modo como Bacon se refere à lendária desarrumação do seu atelier, em South Kensington (o título do primeiro capítulo de Maubert é o respectivo endereço: 7, Reece Mews, Londres). Bacon define o lugar como essencial ao seu trabalho, a ponto de ter especial estima pela sua poeira: “Um dia, dois conservadores da Tate vieram visitar-me. Queriam saber como surgira a composição de um detalhe de uma das minhas pinturas, a textura de um casaco de padrão espinhado. Não compreendiam como é que eu tinha conseguido fazer aquilo, que materiais teria utilizado. Achei imensa graça: tinha pintado com a unha, utilizando poeira apanhada no chão do meu atelier, dando ao casaco um aspecto mais verdadeiro que o original. Quando lhes dei conta disso, foram-se embora, indignados.”
Bacon deixou-nos muitos retratos e auto-retratos (como aquele que aqui se reproduz) tocados por essa energia paradoxal: sentimos os rostos ameaçados de desagregação, ao mesmo tempo que acedemos à mais intensa verdade material do corpo humano. Lição para os olhos: no nosso presente de normalização digital das imagens, corremos o risco de perder esse realismo que circula pelas imponderáveis razões da poeira.