Se continua a existir algo a que podemos chamar “cinema político”, o filme O Candidato Principal constitui um exemplo modelar das suas virtudes. Infelizmente, chegou aos ecrãs televisivos sem ter passado pelas salas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Outubro).
De John Ford a Clint Eastwood, passando por Elia Kazan, Otto Preminger ou Sam Peckinpah, o cinema de Hollywood sempre foi visceralmente político. Entenda-se: não porque reflicta “um” ponto de vista político, antes porque a sua riqueza narrativa espelha uma pluralidade que, de uma maneira ou de outra, nos remete para importantes clivagens políticas e sociais.
A evolução dos mercados cinematográficos, marcada pelo domínio dos chamados “blockbusters”, tem favorecido uma crescente indiferença a essa pluralidade. Não se trata, entenda-se, de demonizar os “blockbusters” (nem, como é óbvio, de os santificar). Trata-se tão só de reconhecer que, por vezes, as regras dominantes no mercado tendem a marginalizar alguns dos melhores e mais sofisticados produtos gerados pelo cinema dos EUA.
Um exemplo recente será o magnífico The Front Runner (2018): ausente das salas escuras, surgiu directamente nos circuitos do cabo com o título O Candidato Principal (TVCine). Ainda bem, claro... O que se discute não são critérios de programação televisiva, antes formas de esvaziamento do espaço social do cinema. Até porque convenhamos que é, no mínimo, desconcertante que não haja uma aposta convicta num filme que tem como intérprete principal um actor tão popular como Hugh Jackman.
Estamos perante um objecto que reflecte a persistente energia de um modelo de abordagem das convulsões da cena política cujas raízes se podem encontrar no “cinema político” da década de 70, em particular no trabalho de realizadores como Alan J. Pakula (1928-1998) ou Sydney Pollack (1934-2008). Esse cinema tem como um dos seus pilares fundamentais o estudo de uma interacção clássica, de alguma maneira gerada nas décadas finais do século XIX e consolidada ao longo do século XX. A saber: os muitos cruzamentos da actividade política com os meios de informação. O filme mais conhecido de Pakula, Os Homens do Presidente (1976), sobre a investigação jornalística do caso Watergate, e a subsequente resignação do Presidente Richard Nixon, pode servir de símbolo modelar.
O Candidato Principal é, justamente, um filme sobre um momento emblemático na história de tais cruzamentos, evocando as atribulações que marcaram o processo de nomeação do candidato do Partido Democrata às eleições presidenciais dos EUA de 1988: líder de todas as sondagens (era o “front runner”, como diz o título original), Gary Hart, senador do estado do Colorado (com Jackman numa das mais subtis composições da sua carreira), acabou por desistir na sequência da revelação pública de uma relação extra-conjugal.
Jason Reitman, realizador de O Candidato Principal, tem-se revelado capaz de abordar situações delicadas, sabendo libertá-las de clichés dramáticos ou moralistas — recordemos o seu Juno (2007), centrado na personagem de uma adolescente que fica grávida. Neste caso, sem recalcar os drásticos efeitos emocionais do drama conjugal de Hart, Reitman sabe colocar em cena um outro drama cuja actualidade não será necessário sublinhar. Assim, depois do rigor deontológico do jornalismo de Os Homens do Presidente, estamos perante o “novo” mediatismo que passou a tratar a vida privada como terreno bélico de (des)informação, a ponto de aniquilar o fundamento democrático e o valor existencial da própria noção de privacidade.
Vem a propósito referir que Reitman é também autor de um dos mais notáveis filmes que já se fizeram sobre a degradação dos mais básicos princípios humanistas através de algumas formas de relação “social” promovidas pela Internet: chama-se Homens, Mulheres e Crianças (2014) e, tal como O Candidato Principal, chegou aos circuitos digitais sem ter sido mostrado nas salas do nosso país. É caso para perguntar se se trata de uma coincidência ou um padrão de tratamento do cinema mais ousado e inventivo.