Mark Zuckerberg definiu um novo mote para a actividade do Facebook: “O futuro é privado”. No seu simplismo, a fórmula afasta-nos da discussão do conceito de privacidade e, no limite, evita pensar qualquer hipótese de futuro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Maio).
Depois de vários casos de abuso de gestão de dados pessoais de frequentadores do Facebook — com inevitável destaque para o escândalo em torno da Cambridge Analytica, envolvendo elementos das fichas de 87 milhões de pessoas —, Mark Zuckerberg veio anunciar um novo mote para a sua empresa. Assim, na conferência anual do Facebook, realizada em San Jose, Califórnia, proclamou uma surpreendente palavra de ordem: “O futuro é privado.”
Num universo parasitado por “soundbytes”, eis um slogan com imediata e perversa ressonância universal a que, em última instância, será difícil reconhecer o mínimo de consistência argumentativa. Como se pode ver/ouvir através de vídeos disponíveis em infinitos lugares da internet, Zuckerberg explicita a sua “mensagem” através de um raciocínio que seria apenas pueril, não se desse o caso de ter adquirido o poder devastador de uma ideologia “social”. A saber: “A privacidade dá-nos a liberdade de sermos nós próprios.”
Como? Registe-se, antes do mais, que o criador do Facebook mudou a agulha do seu discurso (e, ao que parece, dos seus negócios). Antes, numa estratégia de ocupação planetária (com mais de 2,3 mil milhões de seguidores, a palavra é apenas objectiva), o Facebook apresentava-se como a cândida consagração de uma permanente, polimorfa e redentora exposição de “informação” pessoal, capaz de definir um reino de felicidade automática, automaticamente partilhável. Zuckerberg conseguiu mesmo convencer a maior parte desses milhões de pessoas a aplicar os seus emblemáticos polegares ao alto, desse modo confundindo a proliferação de “likes” com um sistema social de radiosa comunhão de interesses, saberes e civilizações.
Agora, tentando relativizar os efeitos devastadores (leia-se: anti-sociais) de todo esse aparato, o Facebook propõe-se ensinar-nos que “sermos nós próprios” nada tem a ver com formas de relação com outros, decorrendo mesmo de uma configuração do mais ritualizado egoísmo — afinal, só somos o que somos quando nos encerramos em algum domínio privado... A fazer o quê? O marketing não podia ser mais linear: quando vivemos a nossa privacidade percorrendo programas e aplicações que o Facebook coloca à nossa disposição.
Compreendo melhor, agora, por que é que o prodigioso filme de David Fincher, A Rede Social (2010), sobre o nascimento do Facebook, suscitou tantas resistências, por vezes mais ou menos revoltosas. Trabalhando sobre um notável argumento de Aaron Sorkin (premiado com um Oscar), Fincher não se limitava a expor o mais básico, isto é, a vertiginosa procura de lucros financeiros através do Facebook. Na sua metódica narrativa, o filme era também o retrato de um sistema de circulação de informação, links e “likes” em que o factor humano tende a existir como elemento descartável, susceptível de permanente instrumentalização simbólica e comercial.
Confunde-me também, por isso, a agitação mediática com que, nos mais diversos contextos, o Facebook passou a ser referido e questionado. Já era tempo de formular algumas perguntas básicas... Sem dúvida. Ainda assim, importa recordar que há poucos anos (antes e depois do lançamento do filme de Fincher) circulava pelo planeta Terra uma adoração beata do Facebook, identificando como “bárbaros” todos aqueles que se atreviam a enunciar a mais ténue dúvida ética sobre o gigantesco dispositivo virtual que estava a instalar-se.
Confunde-me também, por isso, a agitação mediática com que, nos mais diversos contextos, o Facebook passou a ser referido e questionado. Já era tempo de formular algumas perguntas básicas... Sem dúvida. Ainda assim, importa recordar que há poucos anos (antes e depois do lançamento do filme de Fincher) circulava pelo planeta Terra uma adoração beata do Facebook, identificando como “bárbaros” todos aqueles que se atreviam a enunciar a mais ténue dúvida ética sobre o gigantesco dispositivo virtual que estava a instalar-se.
Dir-se-ia que milhões e milhões de pessoas, para além de nacionalidades, raças ou credos, tinham tido a revelação de um éden virtual, tratando qualquer hesitação face às respectivas maravilhas como manifestação de uma minoria de espíritos enclausurados em “preconceitos” medievais... Agora, tudo se passa como se esses mesmos “preconceitos” tivessem sido reconvertidos em apressados preceitos morais, a ponto de definirem uma nova idade da razão.
Como ponto de fuga de tudo isto, deparamos com uma miséria filosófica de que, em boa verdade, Zuckerberg não pode ser apontado como responsável único. Rasurando o passado, procedendo como se o Facebook nunca tivesse existido, o seu infantilismo ideológico tem algo de patético, mas demonizá-lo como pessoa não passará de uma forma cínica de escamotear as nossas responsabilidades individuais e colectivas.
A saga trágica do Facebook é, afinal, a expressão, não de um novo conceito de privacidade, mas de um sistema de valores que vai contribuindo para o esvaziamento prático e simbólico do próprio território privado. Da omnipresença compulsiva das comunicações virtuais ao triunfo obsceno da “reality TV”, demo-nos ao luxo de abraçar um “progresso” comunicacional alicerçado na quotidiana decomposição dos laços humanos.
Como alguém escreveu: “A combinação do capitalismo de mercado livre, mais as plataformas monopolistas, mais a confiança que utilizadores e agentes políticos depositaram na técnica deixou-nos à mercê dos controladores da tecnologia. Os líderes não eleitos das maiores plataformas tecnológicas — em especial Facebook e Google — estão a corroer as fundações da democracia liberal em todo o mundo, e apesar disso entregámos-lhes a segurança da informação nas nossas eleições de 2018 [intercalares nos EUA]. Eles estão a minar a saúde pública, redefinindo os limites da privacidade pessoal e reestruturando a economia global, tudo isso sem darem voz àqueles que são afectados. Todos, mas em especial os optimistas da tecnologia, deveriam investigar o modo como os interesses dos gigantes da internet podem entrar em conflito com os do público.”
Convém sublinhar que estas não são palavras de um qualquer enraivecido activista que se possa definir como anti-militante do Facebook. Nada disso. Trata-se de uma citação de um espantoso livro — Zucked: Waking up to the Facebook Catastrophe (HarperCollins, 2019) —, escrito por Roger McNamee, capitalista sem hipocrisia mercantil, homem de negócios, analista, investidor, em tempos conselheiro de Mark Zuckerberg.
Evitando reduzir os problemas gerados pelo Facebook à gritaria de um qualquer tribunal público, mais ou menos televisivo, lembrando mesmo que a evolução das chamadas “redes sociais” não pode ser dissociada do espírito libertário que, até certo altura, marcou os negócios de Silicon Valley, McNamee convoca-nos para uma reflexão urgente e exigente: muito para além dos poderes virtuais dos “likes”, o que está em jogo é (e será) sempre de natureza política. Resta saber se o trabalho político está a tender para uma angariação de polegares.