domingo, janeiro 11, 2015

Sorkin & Chayefsky

Paddy Chayefsky
A série televisiva The Newsroom retrata de forma muito subtil, subtilmente crítica, a vida num canal televisivo de informação: Aaron Sorkin, o seu criador, é o primeiro a reconhecer a sua dúvida em relação à grande tradição narrrativa de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'Quem se lembra de Paddy Chayefsky?'

A vulgarização dos polegares do Facebook tem favorecido uma desvalorização do trabalho específico da crítica. A dicotomia pueril do “gosto/não gosto” faz com que muitos filmes e produtos de televisão entrem numa espécie de caldeirão estatístico em que a definição de uma barreira intransponível entre “prós” e “contras” parece ser o único objectivo de qualquer confronto de ideias. Aliás, segundo uma lógica que passou a contaminar muitos debates televisivos, já há não valorização filosófica do confronto, apenas conflito e empolamento histérico do conflito.
Muitas reacções americanas à terceira temporada da série televisiva The Newsroom (TV Séries), criada por Aaron Sorkin, surgem como um triste exemplo desse estado de coisas. Ao retratar as relações no interior da redacção de um canal televisivo de informação, a série começou por atrair acusações de falta de verosimilhança, em torno de detalhes mais ou menos anedóticos que nunca ninguém se lembrou de colocar a propósito de, por exemplo, Breaking Bad ou Downton Abbey. Acima de tudo, por defender um jornalismo que não abdica da sua responsabilidade moral, Sorkin foi considerado um enfadonho escritor de sermões...
Sorkin, convém lembrar, é também autor de uma das obras-primas do moderno cinema americano — o argumento de A Rede Social, filmado por David Fincher — em que, de facto, ao narrar a história da criação do Facebook por Mark Zuckerberg, se questionava um universo em que as relações humanas são substituídas pela proliferação de links sustentados pelos célebres polegares. Repare-se: o mais desconcertante não é, agora, o facto de The Newsroom dividir os seus espectadores (críticos ou não). O que surpreende é o facto de alguém chamar a atenção para o mais básico — a saber: a necessidade de o jornalismo televisivo se conceber para além da criação de efeitos mais ou menos “espectaculares” —, sendo por isso tido como suspeito de querer impor aos outros uma visão moralista (?) do próprio labor jornalístico.
Semelhante agitação tem impedido o reconhecimento do facto de Sorkin ser herdeiro de uma riquíssima tradição narrativa e dramática de Hollywood. Ele próprio o recordou, aliás, a 27 de Fevereiro de 2011, a abrir o discurso de agradecimento pelo Oscar que ganhou com o argumento de A Rede Social (The Social Network): “É impossível descrever a sensação de receber o mesmo prémio que, há 35 anos, foi dado a Paddy Chayefsky por outro filme com a palavra ‘network’ no título.”


Referia-se Sorkin a Network/Escândalo na TV (1976), escrito por Chayefsky e realizado por Sidney Lumet, um dos primeiríssimos filmes a chamar a atenção para a ameaça dos desvios populistas da televisão. Mas quem se lembra de um talento como Paddy Chayefsky? Mais: quem é que está disposto a reconhecer que, em cinema como em televisão, a defesa da dignidade humana permanece um tema incontornável, actual e perturbante?