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[ FPF ] |
As imagens não são revelações divinas do mundo à nossa volta. Ou será que o futebol está a mudar a nossa experiência estética? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Fevereiro).
Lembram-se do quadro A Condição Humana, de René Magritte? Aliás, o pintor belga legou-nos dois quadros com esse título, um de 1933, outro de 1935. Ambos exploram o mesmo dispositivo figurativo: vemos uma tela, em cima de um cavalete, de tal modo que aquilo que está pintado “prolonga” os elementos do próprio fundo (uma paisagem campestre, o horizonte do oceano). Dito de outro modo: a representação da visão do pintor “confunde-se” com os elementos da paisagem representada.
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1933 |
Há uma simples lição filosófica na visão de Magritte. A saber: representar o mundo não é “reproduzir” uma verdade automática e eterna, mas criar objectos que prolongam, porventura enriquecendo, a nossa experiência pessoal, essa experiência que, por alguma razão, podemos descrever através de uma sugestiva palavra: mundividência.
Escusado será dizer que, através de pintores como Lucian Freud ou David Hockney, passando por cineastas como David Lynch, a história moderna das imagens evolui através da consciência muito aguda dessa ambivalência: quando mostramos o mundo, estamos apenas a expor uma visão particular das suas componentes e dinâmicas, não uma verdade divina e intocável.
Com a instalação social do vídeo-árbitro (VAR), recuámos um século na nossa experiência estética. Repare-se no que está a acontecer, não apenas em Portugal, mas no espaço público do futebol. Metodicamente, somos levados a contemplar as imagens com a ânsia pueril do crente que confunde a sua relação com a divindade com a totalidade da experiência humana. Estar ou não estar fora de jogo deixou de ser um incidente normal de um desporto fascinante, sendo agora vivido como hipótese de uma revelação transcendental.
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1935 |
Entenda-se: não se trata de negar a beleza inerente a um desporto tão complexo como é, ou pode ser, o futebol. E escusado será sublinhar que a discussão das componentes sociais do VAR não envolve qualquer dúvida sobre a seriedade e dedicação dos respectivos agentes — no site da Federação Portuguesa de Futebol, o VAR é mesmo apresentado através de um título sintomático, afinal ingénuo, que a prática tem desmentido: “Mínima interferência, máximo benefício.”
A questão fulcral não se esgota nas convulsões em que passou a viver a cultura futebolística (que é, muito simplesmente, a cultura dominante). O que se discute é o empobrecimento das nossas relações com as imagens.
Se tais relações se esgotam na procura de uma “verdade” sem rugas nem ambiguidades, isso significa que passámos a entender as imagens como meros instrumentos de “transcrição” da complexidade do mundo e da condição humana. Vivemos angústias infinitas por causa de um cartão vermelho que ficou por mostrar... Será que isso nos pode levar a ignorar a lição de Magritte? É uma lição que envolve ousadia criativa, uma inteligência fulgurante e, afinal, um valor muito esquecido: o prazer de olhar.