BELEZA AMERICANA (1999) |
1. A evolução do caso Kevin Spacey justifica que pensemos um pouco sobre aquilo que está a acontecer. Acima de tudo, importa perceber se estamos realmente a pensar — ou se nos limitamos a reproduzir, em equívoca euforia, aquilo que é voz do povo (a que deveríamos chamar voz dos media, de tal modo a noção de “povo” quase só aparece, nos nossos dias, instrumentalizada por discursos de avassalador simplismo político — sendo Donald Trump o protótipo dominante — que encontram um eco automático, irresponsável e irreflectido, em muitas linguagens de informação).
2. Não é simples reagir a tal conjuntura — entenda-se: pensar para além do imediatismo dos dados mais ruidosos — sem correr o risco de ser apontado como alguém que procura afastar a opinião pública da seriedade daquilo que está em jogo. A saber: o facto de, através de um número crescente de testemunhos, Spacey ser apontado como predador sexual. Há uma certeza: as acusações que pesam sobre Spacey são graves (como são graves as que, desde as notícias em torno de Harvey Weinstein, têm citado outras figuras públicas). Resta saber se o reconhecimento da sua gravidade — reconhecimento em que, creio, todos nos encontramos — explica e, mais do que isso, justifica e legitima a histeria mediática com que o caso está a ser vivido um pouco por toda a parte, invariavelmente reproduzindo padrões de abordagem que provêm dos EUA.
OS SUSPEITOS DO COSTUME (1995) |
3. Claro que todos os discursos panfletários que se têm apropriado do assunto aumentam o seu ruído sempre que surge alguma tentativa de compreender as linguagens do que estamos a viver e, mais concretamente, como é que elas determinam o nosso viver. Reflectir sobre as linguagens que usamos envolve sempre o pensamento sobre alguma forma de responsabilidade — e, no nosso presente, isso tornou-se uma questão quase sempre mediaticamente descartada como irrelevante e “intelectual”. Será preciso lembrar que avançar para tal reflexão não envolve nenhum branqueamento do que quer que seja? Provavelmente, é mesmo indispensável lembrá-lo — e sublinhá-lo. Até porque conhecemos as muitas formas de histeria geradas em Portugal pelo caso José Sócrates. Desde o começo, o que estava (e está) em jogo não é (nunca foi) qualquer forma de desculpabilização seja de quem for. Pode até admitir-se que se venha a provar, para além de qualquer dúvida razoável, que Sócrates é culpado de uma lista imensa de crimes — acontece que, mesmo assim, há quem considere [é o meu caso] que isso não é uma boa razão, nem moral nem deontológica, para evitarmos pensar a degradação de valores jornalísticos que, na abordagem do caso Sócrates, tem proliferado no contexto português.
4. Algo de semelhante se poderá recordar a propósito do que está a acontecer — e, sobretudo, do que não está a acontecer — perante a multiplicação de acusações contra Spacey. Em primeiríssimo lugar, porque o princípio jurídico de presunção de inocência desapareceu — sublinho: desapareceu — do espaço mediático. Depois, porque as singularidades do caso rapidamente foram promovidas à condição de referendo “público” sobre todas as formas de comportamento sexual. No limite, a parte do feminismo que esqueceu a dimensão humana dos males que diz enfrentar achou por bem instrumentalizar a situação, apostando mesmo em exponenciar o lado mais sinistro do pior jornalismo contemporâneo. Como? Reduzindo o espaço social (com ou sem utilização das ditas “redes”) a uma obscena exposição de culpados, agrilhoados e insultados, de modo a que, do lado dos puros, cada um possa atirar as pedras da sua justiça. Discursos desse teor exaltam-se e celebram-se através de circunstâncias como a que estamos a atravessar, ao mesmo tempo que mantêm um silêncio de décadas sobre a repelente humilhação das mulheres em muitos lugares mediáticos, todos os dias presente nos nossos ecrãs (exemplo: o horror anti-feminino — e, mais do que isso, anti-humano — do “Big Brother” televisivo e seus derivados).
5. Face ao delírio de linguagens — que é também uma linguagem delirante — que transformou Spacey em “símbolo” de todos os males da história das relações sexuais, desapareceu qualquer hipótese de pensar a perturbação inerente ao espaço polimorfo da sexualidade. Em boa verdade, mais de 120 anos depois de Freud ter publicado os seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, há forças que nos querem convencer que a sexualidade é um filtro automático, casto e universal, capaz de dividir o mundo entre inocentes, embaixadores de um bem sem fissuras, e culpados, automaticamente escorraçados para um inferno sem remissão. Será este mundo sem compaixão — nem vontade de conhecer os fantasmas do comportamento humano — a nova expressão dos valores cristãos de que, dizem, somos todos abençoados herdeiros?
SEVEN (1995) |
7. É sintomático que esta onda de purificação compulsiva esteja a reforçar toda a apoteótica estupidez dos lugares-comuns que, ao longo de muitas décadas, sempre se satisfez em arrumar Hollywood (aliás, aquilo a que é dado o nome de “Hollywood”) na prateleira das monstruosidades condenadas ao mais radical opróbrio. Como é possível chegar-se ao ponto de mascarar o esplendoroso património artístico que foi — e continua a ser — gerado em Hollywood? Para os apóstolos vingadores do nosso tempo, a indiferença a tal património cinematográfico não basta. Na visão angelical dos seus próprios gestos, torna-se mesmo possível conhecer o último século da história da sexualidade omitindo todos os que, de Eric von Stroheim a Barry Jenkins, passando por George Cukor, Billy Wilder ou Robert Altman, trabalharam ou trabalham na indústria cinematográfica dos EUA — será que pretendem que tal ignorância seja também compulsiva? Infelizmente, Ridley Scott, cineasta menor com alguns filmes maiores, veio agora reforçar os efeitos de tudo isto, protagonizando um vergonhoso gesto de abdicação artística: face às notícias sobre Spacey, aceitou suprimir as cenas em que ele surgia no seu novo filme (All the Money in the World), refilmando-as com outro actor. Eis um gesto certamente livre que, no seu mercantilismo, banaliza e, pior do que isso, degrada o próprio conceito de liberdade de expressão.
8. Importa perguntar se tal gesto é apenas um sinal de um novo modelo de classificação dos filmes, ou melhor, de um novo método de supressão das suas “impurezas”. Que vai acontecer a títulos como Os Suspeitos do Costume (Bryan Singer, 1995), Seven (David Fincher, 1995), L. A. Confidential (Curtis Hanson, 1997), Beleza Americana (Sam Mendes, 1999) ou O Dia Antes do Fim (J. C. Chandor, 2011)? Não é verdade que em todos eles aparece um tal Kevin Spacey? Vão ser retirados de circulação? Ou passarão a ter um cartão de abertura em que se avisa o espectador incauto que no seu elenco está um predador sexual? E, neste caso, os próprios filmes incluirão as provas materiais daquilo que afirmam? Qualquer projecção de Annie Hall (1977), obra central no imaginário romanesco de várias gerações de espectadores, passará a ter como complemento um documentário sobre as acusações de abuso sexual de que Woody Allen foi alvo?
O DIA ANTES DO FIM (2011) |
10. Difícil de pensar é também, por tudo aquilo que aqui apenas se resume, o enquadramento político do tribunal público que condenou Spacey — político, quer dizer, envolvendo a complexa vivência do colectivo e a incontornável irredutibilidade individual. Na verdade, os protagonistas encartados de tal tribunal, incapazes de qualquer pensamento político, confundem-se, muitas vezes, com os que reduziram Donald Trump a uma caricatura do mais anedótico e pré-histórico moralismo: mesma abordagem maniqueísta dos factos, mesmo apagamento da complexidade intrínseca de qualquer facto, mesma procura de encenação do mundo como um frente a frente de “anjos” e “demónios”. Em boa verdade, agora mais do que nunca, Trump deve estar agradecido a tão empenhados inimigos: se ele não conseguir consumar o seu trabalho de purificação da América (e do mundo), outros avançam — desde que seja possível contemplar Kevin Spacey a arder na crepitante fogueira da nossa inocência, está tudo bem.