terça-feira, março 12, 2019

Marvel — masculino ou feminino, tanto faz...

Capitão Marvel é o primeiro filme de super-heróis do ano. Com uma novidade: desta vez, trata-se de uma super-heroína... O resto é rotina — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Março).

Já não há surpresas no universo dos super-heróis. Agora, com a estreia de Capitão Marvel, os estúdios Marvel recuperam mais uma personagem do seu imenso baú de histórias aos quadradinhos, tentando, pelo menos, diversificar a oferta.
O certo é que impera a rotina de produção, embora com uma diferença “simbólica” que contaminou todo o marketing em torno do filme: já sujeito a diversas encarnações masculinas e femininas, o Capitão Marvel surge agora na “versão” de uma mulher, Carol Danvers — em boa verdade, por simples respeito dessa lógica figurativa, o filme deveria ter o título português “Capitã Marvel” (como acontece, aliás, no mercado brasileiro).
A questão acaba por ser meramente anedótica, já que os estúdios Marvel (desde 2015 integrando o império Disney) não não mostras de qualquer mudança de estratégia, estilo ou narrativa. Além do mais, promover a personagem de Carol como “mensageira” de uma qualquer verdade feminina será tão gratuito como considerar que Superman, se fosse cidadão eleitor, votaria Donald Trump...
Acontece que estamos perante um cinema cada vez mais formatado em que o esquematismo de personagens e situações torna os filmes intermutáveis. De tal modo que até mesmo a utilização de actores evidentemente talentosos soa a desperdício. Neste caso, a performance de Brie Larson na figura central tem qualquer coisa de patético: não tendo muito para fazer (além de olhar para os efeitos especiais que o filme vai colocando à sua volta), assistimos ao apagamento de uma intérprete que vimos brilhar, por exemplo, no filme Room/Quarto, de Lenny Abrahamson (que lhe valeu o Oscar de melhor actriz de 2015).
Há mesmo algumas situações bizarras na sua performance, em particular quando contracena com outra notável actriz, Annette Bening, aqui a interpretar a figura da “Inteligência Suprema”. Os seus encontros ocorrem numa paisagem supostamente onírica, de alguma maneira ligada às reminiscências traumáticas que assombram os sonhos de Carol... Que acontece? As bolas (planetas?) em suspensão e os raios de luz que atravessam o cenário são de tal maneira toscos que mais parecem o resultado de alguns desastrados técnicos de efeitos especiais que não sabem dominar a conjugação digital das imagens. Isto num filme que custou 150 milhões de dólares...
O facto de chegarmos aos números do orçamento como uma espécie de ponto de fuga compulsivo é significativo. Aliás, nas últimas semanas, têm proliferado as especulações dos analistas da indústria americana, prevendo as receitas para o fim de semana de abertura de Capitão Marvel, para a exibição nas salas dos EUA e para as receitas globais em todo o mundo (cerca de 65, 175 e 520 milhões, respectivamente). Uma tristeza, enfim: dir-se-ia que já não é possível falar de cinema, mas apenas de performances financeiras.
Steven Spielberg + George Lucas
Bem sabemos que um filme não é “melhor” nem “pior” por nele se investirem milhões ou tostões. O que está em causa não são os movimentos de tesouraria, mas sim os conceitos de espectáculo. Dito de outro modo: mesmo não esquecendo as honrosas excepções, o universo cinematográfico dos super-heróis está reduzido a uma linha de montagem em que as rotinas tecnológicas tendem a anular qualquer energia criativa. No masculino ou no feminino, Capitão Marvel é mais uma penosa ilustração dessa situação.
Reconhecer tal situação não é, de modo algum, uma questão que decorra de qualquer visão enraizada no universo da crítica de cinema. São várias as personalidades que têm chamado a atenção para a “normalização” da produção americana através dos gigantescos gastos em filmes de super-heróis e afins, menosprezando a herança, plural e fascinante, da arte clássica de contar histórias. Uma dessas personalidades chama-se Steven Spielberg e disse-o pela primeira vez num debate realizado no Verão de 2013, na Universidade da Califórnia, chamando a atenção para o risco de “implosão” que Hollywood está a correr. A seu lado estava um tal George Lucas.