Será que já não há lugar, em Hollywood, para Steven Spielberg? A questão talvez seja antes: até que ponto o cineasta ainda se reconhece na indústria que, a partir da década de 70, ajudou a reconfigurar? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Agosto), com o título 'O impasse de Steven Spielberg'.
Há dias, ficou a saber-se que Steven Spielberg desistiu de realizar American Sniper, adaptação da autobiografia de um operacional das forças especiais do exército americano; a decisão ficou a dever-se a desacordo com os critérios de financiamento da Warner Bros., estúdio produtor. Algo de semelhante acontecera, em Janeiro, quando Robocopalypse, um projecto de ficção científica que Spielberg deveria concretizar através da 20th Century Fox, foi adiado por tempo indefinido devido à necessidade de retrabalhar o respectivo argumento e também ao altíssimo orçamento que implicaria. Em anos recentes, estes são apenas dois exemplos de filmes que Spielberg se propôs realizar, mas que ficaram pelo caminho: Harvey, “remake” de um clássico dos anos 50 com James Stewart, e Pirate Latitudes, inspirado no romance póstumo de Michael Crichton, foram também produções anunciadas e abandonadas.
Conjuntura estranha, sem dúvida, sobretudo se nos recordarmos que, para além da excelência artística, Spielberg é uma das personalidades mais poderosas de Hollywood. O certo é que o cepticismo deste quadro nem sequer é alheio aos filmes que ele, realmente, concretizou. Por exemplo, As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne (2011) ficou aquém das expectativas nas bilheteiras, obrigando a um adiamento, para 2015, do segundo título da série, a ser dirigido por Peter Jackson. Além do mais, foi o próprio Spielberg que revelou que o seu admirável Lincoln (2012) esteve à beira de ser “obrigado” a existir, não como objecto de cinema, mas em formato televisivo.
Claro que a carreira de Spielberg não terminou. Aliás, como sempre, ele mantém-se envolvido nas mais diversas produções, incluindo Interstellar, nova realização de Christopher Nolan, e Halo, série televisiva baseada num jogo de vídeo. Em qualquer caso, todas estas peripécias reflectem um impasse com um inevitável valor sintomático, até porque, convém recordar, Spielberg foi uma das primeiras personalidades do cinema americano (a par de Will Smith) a apostar na criação de laços de produção com... a Índia e a China.
Tudo tem a ver, afinal, com o risco de “implosão” que Spielberg reconheceu existir na indústria de Hollywood, devido à sua continuada dependência (financeira e criativa) de meia dúzia de “blockbusters” de Verão. Disse-o há poucas semanas num debate na Universidade da Califórnia, tendo a seu lado George Lucas. Há uma ambiguidade cruel em tal ponto de vista, já que Spielberg e Lucas foram, precisamente, os criadores do modelo de “blockbuster”. O certo é que quando eles faziam, respectivamente, Tubarão (1975) e A Guerra das Estrelas (1977), havia uma ousadia narrativa e um gosto de espectáculo que, em muitos casos, se perdeu. Por isso mesmo, o impasse de Spielberg não pode ser dissociado da cedência criativa de Hollywood aos valores do marketing.