quarta-feira, janeiro 02, 2019

Uma memória cinéfila de Amos Oz

Natalie Portman em Uma História de Amor e Trevas
— actriz e realizadora
Vale a pena recordar a versão cinematográfica de Uma História de Amor e Trevas, o livro autobiográfico de Amos Oz; a realização é de Natalie Portman, também intérprete principal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Dezembro).

As notícias da morte do escritor israelita Amos Oz sublinharam a importância do livro autobiográfico Uma História de Amor e Trevas, editado em 2002 (lançado no mercado português em 2007, com chancela da Asa). Por aí passam, com tocante intensidade, as memórias da mãe do escritor, Fania, que se suicidou quando ele tinha 12 anos; aí encontramos também as razões históricas e, mais do que isso, afectivas que levaram Oz a nunca abdicar da defesa de uma solução de dois estados para o conflito israelo-palestiniano.
Menos referido terá sido o facto de existir uma adaptação cinematográfica de Uma História de Amor e Trevas. Lançada em 2015 (chegou às salas portuguesas no ano seguinte), trata-se de uma coprodução entre Israel e EUA, realizada por Natalie Portman, actriz nascida em Jerusalém, com dupla nacionalidade (israelita e americana) — é ela, aliás, que assume o papel de Fania [video].


Não creio que o filme de Portman, apesar da vibração da sua composição, seja uma obra-prima. Não é um mero juízo de valor que está em causa. Ou melhor, tal como no momento do seu lançamento, creio que devemos valorizar a sua especificidade narrativa, hoje em dia menosprezada pelo imaginário dos super-heróis e da beatificação da tecnologia (sobretudo junto dos espectadores mais jovens). O filme Uma História de Amor e Trevas é, de facto, uma muito digna recuperação de um modelo de drama histórico em que a complexidade das convulsões colectivas passa sempre pelas singularidades dos destinos individuais.
Sublinhar as virtudes de tal modelo narrativo não envolve qualquer saudosismo. Em boa verdade, a cinefilia opõe-se mesmo a qualquer paralisia nostálgica, celebrando antes essa capacidade dos filmes manterem um diálogo vivo com os elementos históricos, não para os “reproduzir” (não estamos a falar de directos televisivos), antes para os encenar e reencenar como reflexo plural, por vezes contraditório, das existências individuais.
Na actual conjuntura internacional, não deixa de ser curioso referir que, entre os títulos que podem concorrer para o próximo Oscar de melhor filme estrangeiro (as nomeações serão anunciadas a 22 de Janeiro), encontramos vários casos desse cinema de metódica e apaixonada problematização das relações individual/colectivo.
O óbvio favorito ao Oscar é Roma, do mexicano Alfonso Cuarón. Mas vale a pena citar os exemplos de Guerra Fria, do polaco Pawel Pawlikowski, ou Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, do japonês Hirokazu Kore-eda. Porque é que esses filmes não gozam dos mesmos favores do marketing que são concedidos às aventuras dos heróis da Marvel ou da DC-Comics? Eis uma questão que, sendo outra, talvez nos remeta para a mesma dúvida social (sem rede). A saber: como valorizamos as vidas vividas, não em paisagens de outras galáxias, mas neste mal amado planeta Terra?