Baseado num romance de Gillian Flynn, a série Sharp Objects, protagonizada por Amy Adams, surgiu agora no mercado do DVD: um grande acontecimento televisivo com muitos contactos com a memória do cinema clássico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Janeiro).
A multiplicação delirante de séries televisivas gerou um novo modelo de intelectualismo (curiosamente, fundado na celebração do que é “popular”). Assim, há todo um discurso contemporâneo que gosta de sugerir que é nas séries que está “tudo” o que vale a pena conhecer no audiovisual contemporâneo.
Em boa verdade, a questão é bastante mais básica. A saber: muitas pessoas (legitimamente, como é óbvio) mudaram os seus padrões de consumo e, na prática, afastaram-se da actualidade cinematográfica. Ainda assim, resta lembrar que estamos perante universos cúmplices, alheios a esquematismos desse género. Há mesmo séries que se podem definir através do modo como estão contaminadas pelos mais clássicos valores cinematográficos. Sharp Objects é uma dessas séries, por certo das mais notáveis que foram lançadas ao longo de 2018 (agora disponível entre nós em DVD/Warner).
Dois nomes afiguram-se essenciais para sublinharmos as singularidades de Sharp Objects. Em primeiro lugar, Gillian Flynn, conhecida sobretudo através de Gone Girl/Em Parte Incerta, o seu romance que este na base do prodigioso filme homónimo realizado por David Fincher (em 2014, com Rosamund Pike e Ben Affleck). Sharp Objects (entre nós publicado como Objectos Cortantes, Bertrand) é o primeiro romance de Flynn e centra-se na saga trágica de Camille Preaker, jornalista que é enviada à sua cidade natal para investigar a morte criminosa de duas crianças, acabando por deparar com a herança fantasmática da sua própria infância.
O segundo nome é o canadiano Jean-Marc Vallée, cineasta de filmes como O Clube de Dallas (2013) ou Wild/Livre (2014) que já o ano passado se tinha destacado no modelo de mini-série com Big Little Lies (que irá ter uma segunda temporada). Em boa verdade, com os seus oito episódios, pode dizer-se que Sharp Objects existe como um filme de quase sete horas de duração — nele encontramos um processo subtil de exposição e desmontagem de uma vivência enraizada num passado em que as razões da vida surgem sempre assombradas pelas sombras da morte.
Interpretada pela brilhante Amy Adams, a personagem de Camille surge, assim, como a investigadora (literalmente, uma vez que é essa a sua missão profissional) que vai deparando com uma realidade, de uma só vez familiar e social, que sobrevive através de muitos processos de normalização e ocultação. Daí a importância central da personagem da mãe de Camille, interpretada pela também admirável Patricia Clarkson (distinguida com um Globo de Ouro): ela emerge como símbolo de uma antiga organização matriarcal e, ao mesmo tempo, fantasma vivo da identidade de Camille.
Sharp Objects organiza-se, assim, como um melodrama familiar crescentemente rasgado pelas convulsões de um “thriller” em que, de facto, quase nada é o que parece. Chamemos-lhe televisão ou cinema, série ou filme, o certo é que se trata de uma invulgar proeza artística. Entretanto, registe-se que Vallée está a preparar um filme sobre John Lennon.