* SHARP OBJECTS, Jean-Marc Vallée
Será que chegámos ao ponto em que se começa a construir uma galeria de autores-de-séries? A pergunta não é exactamente conceptual, mas industrial. Isto porque figuras como o canadiano Jean-Marc Vallée — dirigindo esta fabulosa adaptação do romance homónimo de Gillian Flynn (em oito episódios), um ano depois de ter assinado Big Little Lies (sete) — estão a provar que há uma linguagem televisiva que, afinal, nasce de sofisticadas sínteses de vários géneros do cinema clássico, do melodrama ao noir. A história da jornalista (admirável Amy Adams) que regressa à sua cidadezinha para investigar o assassinato de duas meninas, acabando por encontrar a energia muito viva dos seus próprios fantasmas familiares, constitui um exemplo modelar de narrativa em permanente oscilação entre a intensidade do visível e a perturbação do invisível. Mais um sinal, enfim, do modo como o carácter adulto das histórias com imagens e sons, vilipendiado pelo infantilismo de super-heróis e afins, se transferiu, em parte significativa, para o pequeno ecrã. Pequeno?
* HOUSE OF CARDS [oito realizadores]
Na sequência de várias acusações de assédio sexual, Kevin Spacey foi despedido de House of Cards no final da quinta temporada. Tendo esse dado em conta, podemos encarar a sexta e última temporada como a cândida conclusão de uma história que perdeu a sua personagem central, o Presidente dos EUA Frank Underwood... Pura ilusão: em boa verdade, os oito episódios finais constituem um angustiado e sedutor esforço narrativo e simbólico para lidar com uma entidade que, de personagem política, passou a existir como fantasma do Mal absoluto. Coisa que, por certo, o fictício Underwood não desdenharia, mas que a série trabalha com um requinte de malvadez (perdoe-se a redundância) que, como seria de esperar, não mereceu grande atenção mediática. Dito de outro modo (evitando spoilers): Claire Underwood revela-se uma consumada herdeira do marido, obrigando-nos a rever, por defeito, as nossas visões mais cépticas sobre o exercício do poder político e, além do mais, oferecendo a Robin Wright (realizadora do episódio nº 8) um dos momentos mais altos da sua carreira.
Não será a coisa mais simpática de referir, mas convenhamos que há uma derrota inerente ao projecto de Sara — partilhada, aliás, por todos aqueles que defenderam a brilhante série de Marco Martins. Como se prova, nem mesmo um objecto interior aos dispositivos televisivos, apostado em discutir a medíocre "telenovelização" de muitos desses dispositivos, consegue desencadear algum tipo de reflexão colectiva, eventualmente de suave auto-crítica. Em Portugal, é cada vez mais difícil abrir espaços de pensamento sobre as componentes populistas que contaminam o espaço televisivo, infinitamente mais difícil do que transformar em tragédia colectiva a queda de um qualquer treinador de futebol... O que prova, além do mais, que o problema da formatação telenovelesca passou a exceder, e muito, os espaços específicos das narrativas audiovisuais — tal formatação é, no arranque de 2019, o mais poderoso factor cultural do nosso viver material e espiritual.