Ao contrário de outros títulos que realizou, o novo filme de Lars von Trier, A Casa de Jack, não tem gerado grandes confrontos de ideias. Tanto pior para as ideias — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro).
Creio que todos os interessados em cinema têm alguma memória do escândalo protagonizado por Lars von Trier, na edição de 2011 do Festival de Cannes, durante a conferência de imprensa do seu filme Melancolia (que, aliás, valeria a Kirsten Dunst um prémio de interpretação). Referindo-se ao nazismo, o cineasta teceu algumas considerações francamente infelizes, confundindo a ligeireza do humor individual com a banalização das tragédias históricas colectivas. Mesmo considerando que terá sido um momento de pura precipitação (o que podemos admitir), o certo é que o festival reagiu, considerando-o “persona non grata” e solicitando a sua saída de Cannes (posição institucional que me pareceu correcta).
Menos noticiado foi o facto de, oito anos mais tarde (em Maio de 2018), o certame ter perdoado Lars von Trier, acolhendo-o de novo na sua selecção oficial: a sua longa-metragem The House That Jack Built, com Matt Dillon e Bruno Ganz, passou, extra-competição, em ante-estreia mundial. Perante uma quase geral indiferença mediática, o filme chegou esta semana aos ecrãs portugueses, com o título A Casa de Jack.
Como se prova, as atitudes de tolerância (neste caso do maior festival de cinema do mundo face a um artista que, objectivamente, tinha posto em causa os seus valores democráticos) quase nunca recebem a evidência noticiosa que é conferida a tudo o que envolva algum tipo de tensão, conflito ou violência — é uma lei das imagens televisivas em que vivemos. Mas há um paradoxo inerente a esta indiferença que parece ter-se instalado em relação a Lars von Trier. De facto, se ele é alguém cujos filmes provocam o espectador, no sentido de o levar a enfrentar as componentes mais violentas dos seres humanos (lembremos apenas Dogville ou Anti-Cristo, respectivamente de 2003 e 2009), então não creio que haja na sua filmografia algo tão radical e perturbante como A Casa de Jack.
Em termos esquemáticos, digamos que A Casa de Jack é o retrato íntimo de um “serial killer” (interpretado por Dillon com a frieza aparente de um autómato). A sua colecção de assassinatos surge como uma antologia de cenas em que se cumpre o misto de repetição e revelação que uma fábula moral pode envolver — o título original remete, aliás, para uma tradicional canção infantil de origem britânica. No limite, esta é mais uma narrativa de Lars von Trier sobre a fragilidade do Bem e a omnipresença do Mal.
Seria tudo mais interessante se, em Cannes, o escândalo se tivesse “renovado”? Não creio que a questão seja essa. Acontece apenas que o burburinho que acompanha alguns objectos artísticos, muitas vezes induzido pelas chamadas “redes sociais”, não corresponde a nenhum interesse consistente pelo que tais objectos envolvem ou podem envolver.
Repare-se: não se trata de sugerir que devêssemos estar todos agora, em festiva multidão, a celebrar A Casa de Jack e o seu autor. Há mais modos de viver e, sobretudo, de pensar para além das multidões ululantes que são sempre notícia... Só mesmo por indiferença emocional se poderá pensar que admirar este filme (como eu admiro) é o mesmo que esperar que dele nasçam radiosos consensos. Bem pelo contrário, estamos perante um gerador de dramáticas e, creio, insuperáveis clivagens. Acontece que tais clivagens já não se traduzem em enriquecimento do espaço das ideias — o ruído global está a triunfar sobre a nossa inteligência.