1. Um dos efeitos mais perversos de muitas polémicas dos nossos dias é o seu determinismo compulsivo, sem alternativa. Dir-se-ia que não se trata de conhecer a complexidade do que está em jogo, mas apenas de dividir o mundo em "puros" e "impuros" (além do mais, demonizando os segundos).
2. Kevin Hart foi convidado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood para apresentar os Oscars (24 Fev.). Aceitou. Dias depois, a revelação de algumas frases suas, provenientes de contextos de comunicação ou representação [Billboard], foram denunciadas por muitas personalidades, em particular membros da comunidade LGBT, como anti-gay. Hart acabou por desistir da função para que tinha sido convidado [Variety].
3. Entretanto, os sinais polémicos não deixaram de proliferar, até que, cerca de um mês depois da sua desistência, Hart veio declarar publicamente que não voltará a falar do assunto. Porquê? Por não reconhecer legitimidade a quem o criticou de forma mais severa? Não. Antes porque se identificou como (ou foi conduzido à condição de) peça móvel e, no limite, descartável de um processo de compulsiva "purificação".
4. É a explicitação disso mesmo que encontramos na conversa de Hart com Michael Strahan, tão invulgar quanto corajosa, no programa Good Morning America (ABC). A ponto de a questão desembocar numa pergunta que, regra geral, os espaços mediáticos — e, em particular, os dispositivos televisivos — não enfrentam. A saber: por que é que, para além das considerações específicas que possam sustentar uma polémica, alguém deve ser tratado como um réu obrigado a demonstrar que não é um monstro?
5. Não está, em jogo, entenda-se, a maior ou menor simpatia que a figura pública de Kevin Hart possa suscitar. Trata-se antes de saber o que acontece quando o "social" se reduz a um tribunal que criou o seu próprio sistema de leis — eis 10 minutos, de uma só vez fascinantes e perturbantes, de diálogo televisivo.