terça-feira, dezembro 25, 2018

Kevin Spacey e o seu fantasma

HOUSE OF CARDS [fragmento de imagem promocional]
I. Kevin Spacey regressou. Em video. No YouTube. Assumindo a personagem do Presidente Frank Underwood, da série House of Cards... Ou talvez não.

II. Eis um episódio sintomático deste tempo fantasmático em que vivemos: ser ou não ser deixou de funcionar como aparato filosófico de existência, dando lugar a um caldeirão de identidades em que o ser se confunde com a imagem, ou melhor, com a capacidade de cada indivíduo se produzir enquanto imagem — problema que as "redes sociais" olimpicamente ignoram, já que vivem (e proliferam) através da patética ilusão de uma transparência, automática e reveladora, de qualquer imagem.

III. É isso que faz Spacey, quer dizer, regressar enquanto imagem — e com uma inteligência perversa a que não é possível ficar indiferente. Sob o lema "Let me be Frank", o actor retoma o seu papel de Frank Underwood, Presidente dos EUA na série House of Cards (de que foi despedido quando surgiram várias acusações de assédio sexual, uma das quais o levará a tribunal, daqui a poucos dias, em Boston).

IV. Claro que não é fácil pensar tão perturbante ambiguidade — sobretudo num tempo em que o "social" está reduzido à miséria justiceira de dividir o mundo, de uma vez por todas, em puros e impuros. Acima de tudo, na maior parte dos contextos, tornou-se impossível fazer passar o mais básico dos pressupostos. A saber: discutir a representação pública de Spacey não é o mesmo que branquear as acusações de que ele é alvo — escusado será sublinhar que pertence à justiça esclarecer a pertinência dessas acusações, aplicando as sanções legais decorrentes dos crimes que forem provados.

V. Acontece que a nova performance de Spacey (depois de mais de um ano de silêncio, na sequência da sua supressão do filme Todo o Dinheiro do Mundo) se apoia numa vertigem que, todos os dias, consumimos — a de termos passado a habitar um universo, de uma só vez mediático e social, em que a representação face a uma câmara tende a substituir qualquer princípio de naturalidade ou naturalismo. Perguntamo-nos, assim, se devemos aceitar a sugestão de Spacey: fala-nos do lugar ficcionado do seu "Frank", ou está a solicitar-nos que aceitemos a sua "franqueza"? Os fantasmas distinguem-se, precisamente, pela crueza do seu poder: assustadores ou não, são sempre sedutores.