sexta-feira, dezembro 07, 2018

E do flamenco nasceu um ícone pop



Se as barreiras que outrora separavam (para alguns) os espaços de diferentes géneros musicais já caíram por terra o mesmo se pode dizer das que poderiam também afastar tempos e tradições. Tudo comunica. Tudo se cruza. Que o diga esse vasto espaço a que podemos chamar ‘global club music’ (ou a variação que entendermos dar a esta ideia) pelo qual sons, ritmos e experiências de vários lugares, em alguns casos convocando ecos de tradições locais, se juntam e dançam perante uma plateia sem fronteiras, servindo aqui as eletrónicas de língua franca que assegura as mais fluentes formas de diálogo. Tal como nestes territórios acima das culturas e das geografias pelos quais se tem afirmado uma nova música de dança que traduz a idade da comunicação global também as investidas locais mais focadas sobre este ou aquele universo claramente ligado a grandes tradições procura modos de encontrar caminhos de diálogo. E se aqui as geografias são mais localizadas (embora com gosto por se dar a ouvir tanto ali mesmo como mais longe) já os diálogos são desenhados em pontes que cruzam tempos, agitando tradições e nelas encontrando formas de expressar contemporaneidade. E curiosamente chegamos ao fim com uma música que pode servir de contraponto aos desígnios da ‘global club music’. É que se essa música junta peças de muitos lugares procurando, apesar das referências citadas, transcender a origem para encontrar, sobretudo para quem está na pista de dança, um patamar global comum, já nos territórios de exploração de tradições mais localizadas surgem vozes que, partilhando ferramentas comuns, procuram cantar marcas de identidade. É o que acontece com Rosalía que, no seu segundo álbum editado há poucos dias, mostra como o flamenco lhe serve para a ajudar a afirmar identidade e, ao mesmo tempo, através de si, sob novos desafios, sugere pistas que podem cativar mesmo quem até aqui não tenha sequer nunca passado por esses lugares da tradição cultural do sul de Espanha.

Há desde logo um elemento curioso nesta história. Rosalía Vila Tobella nasceu na Catalunha, facto que afirma uma verdade identitária que não é necessariamente de berço e sangue mas, antes, de vivência, de gosto, de demanda pessoal. Afinal vivemos no século XXI, certo? E Rosalía não chegou a “El Mal Querer” num desafio às leis da física que nos dizem que não se vai automaticamente dos zero aos cem quando se está a conduzir um automóvel na estrada (e curiosamente há neste seu novo disco um tema que usa samples do som de carros).
Houve um percurso, que passou por colaboradores com história feita no universo do flamenco (fez primeiras partes para Miguel Poveda, por exemplo) e em 2017 o álbum “Los Angeles” dava já sinais de procura de desafios possíveis com o flamenco como ponto de partida… Não faltou desde logo quem contestasse as suas investidas, o que me fez lembrar como, por estes lados, houve quem acolhesse com desconforto um “Povo Que Lavas No Rio” na voz de António Variações ou o visionário “Amai” de Paulo Bragança, ambos ensaiando então como partir do fado para dialogar com a modernidade pop.

“El Mal Querer”, que propõe uma experiência concetual (cada canção corresponde a um episódio de uma narrativa ordenada), revela uma visão atual e desafiante sobre o flamenco. E tanto mantém marcas da sua genética tradicional – sobretudo no canto, na guitarra e do desenhar da estrutura rítmica pelas palmas – como junta modos de compor, de usar eletrónicas (como recurso instrumental ou de manipulação) ou até mesmo a presença pontual de uma orquestra para procurar os diálogos entre tradição e modernidade, entre o flamenco e a canção pop dos quais emerge um álbum que dificilmente escapará às listas dos melhores do ano. É um disco intenso, capaz de convocar toda a carga emotiva que habita o flamenco para a projetar num espaço que, sem apagar essas marcas de origem, as projeta entre sonoridades e formas que estão na linha da frente da música do nosso tempo.