domingo, dezembro 23, 2018

"Coletes amarelos" — a ressaca

GIORGIO DE CHIRICO
A Canção do Amor
1914
A. Na ressaca da manifestação dos "coletes amarelos", assistimos ao triunfo mediático de uma insólita transferência temática: já não se pensa (se é que alguma vez se pensou) o que é, ou seria, tal manifestação; agora quase tudo parece ter a ver com o jornalismo e a "comunicação social". Daí três "análises" que têm circulado:
1 — a "comunicação social" exagerou na antecipação da manifestação e da sua potencial dimensão;
2 — os "coletes amarelos" portugueses são uma derivação redutora e, no limite, simplista do fenómeno francês;
3 — o jornalismo dominante passou a existir como eco automático, sem pensamento, das chamadas "redes sociais".

B. Podemos reconhecer que qualquer uma dessas considerações terá algum fundamento, em especial no que diz respeito à cedência de muitas formas de jornalismo à mediocridade panfletária e argumentativa que se socializou nas chamadas "redes sociais". Afinal de contas, a vida vivida, do espaço singular de cada cidadão aos mecanismos de informação, possui algo de sistema de vasos comunicantes — tudo o que acontece não pode ser compreendido através da sua inserção num qualquer domínio fechado, acontece através de um jogo de relações, influências e contaminações que resiste a ser descrito de forma mecânica, estritamente racional. Resta saber que consciência temos disso enquanto sociedade.

C. Assistimos, enfim, ao triunfo de um esvaziamento, metódico e quotidiano, do factor social. Desde logo porque a maior parte dos meios de comunicação (e também muitos cidadãos) deixaram de usar a palavra social para se referirem à complexidade das relações humanas — há mesmo algum jornalismo cego ao espaço/tempo em que existe, só reconhecendo que algo de social acontece quando uma qualquer agitação, por mais anedótica que seja, de preferência estúpida e pueril, surge em "rede". Um eventual resgate caricatural daquilo que aconteceu com os "coletes amarelos" portugueses não passa, por isso, de um sintoma da nossa fragilidade enquanto colectivo — temos "redes", "links" e polegares em frenética actividade; faltam-nos ideias para lidar com o outro.

P.S. — Em tempos de triunfo das "redes sociais", a solidão individual constitui a verdade mais radical do nosso mal viver — estamos a ser (des)educados para ignorar e, no limite, menosprezar o nosso semelhante.