sábado, junho 30, 2018

A IMAGEM: Donovan Wylie, 1999

DONOVAN WYLIE [Magnum]
Belfast, Irlanda
1999

Charles Lloyd + Lucinda Williams

Eis uma das pérolas musicais deste ano de 2018. Prolongando uma fascinante aliança criativa, o saxofonista Charles Lloyd e a cantora folk Lucinda Williams apresentam um maravilhoso álbum, Vanished Gardens, que pode ser condensado numa noção muito simples: o jazz expõe-se à contaminação de outras linguagens tradicionais, ainda e sempre reinventado os enigmas da sua energia.
Lloyd, convém sublinhar, surge na companhia dos fiéis The Marvels, colectivo de excelência integrando Bill Frisell (guitarra), Greg Leisz (pedal steel), Reuben Rogers (baixo) e Eric Harland (bateria). Em metódico ziguezague, o alinhamento vai alternando as faixas instrumentais com as canções de Williams, uma delas, We’ve Come Too Far To Turn Around, inédita. Há também três novos temas de Lloyd, uma magnífica versão de Monk’s Mood, de Thelonious Monk, com o dramatismo da voz de Williams a encerrar o álbum numa vibrante recriação de Angel, de Jimi Hendrix.
Eis a versão que Lloyd e Williams gravaram em 2017 do clássico Masters of War, de Bob Dylan (não incluída neste álbum); segue-se um diálogo entre os dois sobre Vanished Gardens.




>>> Sites oficiais: Charles Lloyd + Lucinda Williams.

O deus do futebol

Seria interessante saber como é que as crenças religiosas encaram a religião do futebol. De facto, como se prova (e este é apenas um exemplo possível), a inscrição social do futebol passou a ser assumida, jornalisticamente, como coisa religiosa, enraizada na relação com alguma divindade. Dito de outro modo: a cultura futebolística dominante está para além do espaço mediático — afirma-se e, pelos vistos, quer impor-se como evento transcendental. Com apóstolos.

sexta-feira, junho 29, 2018

Frankenstein, aliás, Mary Shelley

Elle Fanning
A autora de Frankenstein, Mary Shelley, é evocada por Haifaa Al-Mansour, cineasta da Arábia Saudita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Junho), com o título 'O mito de Frankenstein revisto por uma cineasta saudita'.

Tempos fascinantes, estes de ávido questionamento das formas de representação — em particular no cinema — do universo feminino. Sem esquecer que qualquer processo desse teor envolve também as complexidades do masculino (mesmo quando os discursos ”militantes” tentam reduzir o masculino a um fantasma maligno ou a um pormenor dispensável). Reparemos num filme como Mary Shelley. A sua simples descrição envolve uma curiosa pluralidade: aqui está uma coprodução europeia (Reino Unido/Irlanda/Luxemburgo), evocando a escrita do romance gótico Frankenstein por Mary Shelley (1797-1851), com a americana Elle Fanning a assumir o papel central, pertencendo a realização a uma mulher nascida na Arábia Saudita, Haifaa Al-Mansour.
Aproximamo-nos do filme através das memórias de muitas adaptações de Frankenstein com que o cinema tem relançado o mito da criação de um novo ser humano (lembremos o título integral do romance: Frankenstein ou o Moderno Prometeu). Ao mesmo tempo, cedo compreendemos que este não é um filme dependente da representação da “coisa” criada por Victor Frankenstein, mas sim centrado em algo que, historica e simbolicamente, antecede a dimensão cinematográfica: o desejo que presidiu à sua criação literária.
Por aí passa, aliás, uma fundamental componente dramática. Como filha de um casal de escritores (William Godwin e Mary Wollstonecraft), Mary vive uma insólita contradição existencial: há nela um impulso para a escrita que não encontra eco nos valores dominantes, de algum modo aconselhando-a a não se lançar em tais ousadias; ainda de acordo com tais valores, o seu gosto pelo mundo literário das trevas surge como coisa menor perante a poesia do marido, Percy Bysshe Shelley (1792-1822).
O filme consegue fazer passar uma ideia subtil, contrária a qualquer simplismo feminino ou maniqueísmo feminista. A saber: os artifícios do universo criado por Mary em Frankenstein estão longe de a afastar do mundo em que vivia. Desde logo, porque a história do homem que desafia a criação divina é indissociável das convulsões e experimentações da ciência da época; depois, porque como lhe diz Claire (meia irmã de Mary), as singularidades criativas de Frankenstein consagram também a sua identidade feminina.

Memória de Wadjda

No papel de Mary, Elle Fanning dá mais uma prova da sua delicada versatilidade, ela que, apenas com 20 anos (celebrados no passado dia 9 de Abril), se pode considerar uma veterana — começou aos 3 anos, assumindo a versão mais nova da personagem interpretada pela irmã, Dakota Fanning, em I Am Sam – A Força do Amor (2001), filme de Jessie Nelson com Sean Penn e Michelle Pfeiffer. Entre os momentos emblemáticos da sua carreira incluem-se A Porta no Chão (2004), Babel (2006), Super 8 (2011) e Mulheres do Século XX (2016).
De alguma maneira, a personagem de Fanning prolonga a visão de Haifaa Al-Mansour que conhecíamos através de O Sonho de Wadjda (2012), primeiro filme dirigido por uma mulher da Arábia Saudita. A personagem central desse filme tinha, de facto, um sonho: possuir uma bicicleta. Para ela, era algo tão vital como escrever um romance sobre a nossa convivência com os monstros.

A IMAGEM: Steven Meisel, 2018

STEVEN MEISEL
Cara Delevingne
Vogue UK (Junho 2018)

quinta-feira, junho 28, 2018

Parábola sexual, comédia romântica (2/2)

Com Amor, Simon é aquilo que se poderia chamar uma parábola sexual que não abdica de ser uma comédia romântica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'As linguagens têm sexo?'.

[ 1 ]

Em cinema, o que define a força de uma narrativa realista não é a mera verosimilhança de cenários e guarda-roupa. É, isso sim, a proximidade existencial das personagens e respectivas acções — numa história contemporânea, poderá ser a sensação de que, directa ou indirectamente, conhecemos pessoas como aquelas que nos são apresentadas no interior de uma determinada história. Com Amor, Simon é um filme com essas qualidades, até porque os seus jovens são interpretados por um magnífico elenco em que é forçoso destacar a complexa sobriedade de Nick Robinson, no papel de Simon (tínhamo-lo visto, por exemplo, em Mundo Jurássico, lançado em 2015).
Por pedagógica ironia, vale a pena referir que a pulsão realista do filme se “desmancha” em dois momentos emblemáticos. Um deles é uma breve e sugestiva sequência musical em que Simon se imagina como protagonista de uma performance organizada a partir do arco-íris da bandeira LGBT — dir-se-ia que o filme quer lembrar que a afirmação de um símbolo pode e deve saber integrar as mais diversas linguagens (incluindo a do cinema musical). A outra, divertidíssima, propõe uma variação daquilo que é, ou parece ser, o drama central de Simon. A saber: a “obrigação” de se assumir como homossexual perante todos os seus interlocutores familiares, escolares e sociais. Que vemos, então? Uma série de personagens a revelar aos outros, em tom de esforçado confessionalismo, um facto insólito: nunca o disseram a ninguém, mas são... heterossexuais!
A comédia (e, em particular, a tradição da comédia de Hollywood) passa por aqui. Entenda-se: não se trata de minimizar, muito menos de ignorar, as formas de marginalização ou repressão dos homossexuais. Trata-se, isso sim, de lembrar que também as linguagens narrativas são polimorfas.

Creedence Clearwater Revival: 50 anos

Creendence Clearwater Revival: a banda de John Fogerty, elemento vital das convulsões das décadas de 60/70, cruzando as raízes folk com a energia do rock'n'roll, está a comemorar os seus 50 anos. E com uma novidade muito especial: Fortunate Son, um dos seus temas mais emblemáticos (consagrado como hino dos movimentos contra a guerra do Vietname), tem agora direito a teledisco — passando e presente aliados num vibrante simbolismo.

Some folks are born made to wave the flag,
Ooh, they're red, white and blue.
And when the band plays "Hail to the chief",
Ooh, they point the cannon at you, Lord,

It ain't me, it ain't me, I ain't no senator's son, son.
It ain't me, it ain't me; I ain't no fortunate one, no,

Yeah!
Some folks are born silver spoon in hand,
Lord, don't they help themselves, oh.
But when the taxman comes to the door,
Lord, the house looks like a rummage sale, yes,

It ain't me, it ain't me, I ain't no millionaire's son, no.
It ain't me, it ain't me; I ain't no fortunate one, no.

Some folks inherit star spangled eyes,
Ooh, they send you down to war, Lord,
And when you ask them, "How much should we give?"
Ooh, they only answer More! more! more! yoh,

It ain't me, it ain't me, I ain't no military son, son.
It ain't me, it ain't me; I ain't no fortunate one, one.

It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate one, no no no,
It ain't me, it ain't me, I ain't no fortunate son, no no no,



>>> Site oficial de Creedence Clearwater Revival.

quarta-feira, junho 27, 2018

Joe Jackson (1928 - 2018)

Pai, patriarca, empresário do clã Jackson, Joe Jackson faleceu no dia 27 de Junho num hospital de Las Vegas, vitimado por cancro no pâncreas — completaria 90 anos no dia 26 de Julho.
De seu nome Joseph Walter Jackson, pai de Michael Jackson (1958-2009) e Janet Jackson (n. 1966), teve 11 filhos. Era, por assim dizer, o fundador de uma das mais conhecidas famílias do entertainment musical, mantendo uma gestão apertada da sua descendência, a ponto de ter sido acusado de abuso de autoridade (em particular pelo filho Michael que, em qualquer caso, o veio a desculpar publicamente). The Jackson 5 — com os irmãos Jackie, Tito, Jermaine, Marlon e Michael — terá sido a sua produção de maior sucesso: o grupo, agora designado como Jacksons, vendeu mais de 75 milhões de discos em todo o mundo, tendo sido entronizado no Rock and Roll Hall of Fame em 1997. Foi integrado no Rhythm & Blues Hall of Fame em 2014.

>>> Obituário na CNN.



>>> Obituário na Rolling Stone.
>>> Site oficial de Joseph Walter Jackson.

terça-feira, junho 26, 2018

Novo filme de Zemeckis

Chama-se Welcome to Marwen, é a nova realização de Robert Zemeckis. E o mínimo que se pode dizer do primeiro e fascinante trailer é que, depois de títulos como Polar Express (2004), Beowulf (2007) ou Um Conto de Natal (2009), Zemeckis continua a apostar em singularíssimas abordagens das novas tecnologias, no limite, relativizando e reinventando a própria figuração do corpo. A estreia está marcada para Novembro, nos EUA, de modo a garantir a entrada na corrida para os Oscars — na Europa, surgirá em Janeiro de 2019 (dia 10, em Portugal).

segunda-feira, junho 25, 2018

A cidade, o arquitecto e o cinema

* COLUMBUS, de Kogonada
[ DN, 21-06-18 ]

Nome sobretudo conhecido através de ensaios videográficos sobre os mais diversos cineastas (Alfred Hitchcock, Jean-Luc Godard, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, David Fincher, etc.), o sul-coreano Kogonada assina aqui uma magnífica ficção centrada na odisseia intimista de um homem que viaja da Coreia até aos EUA — e, mais especificamente, à cidade de Columbus, Indiana — para visitar o seu pai, um arquitecto gravemente doente. A cidade, justamente, acaba por ser a primeira e decisiva personagem, desenhando um mapa de abstracções visuais e afectivas através dos seus deslumbrantes edifícios.
O resultado é uma delicada teia “psicológica” através da qual o cinema se afirma como conjugação das palavras e dos lugares, das imagens e da arquitectura — em resumo, um pequeno e deslumbrante ovni.

Paul McCartney: duas novas canções

Aos 76 anos (celebrados a 18 de Junho), Paul McCartney anuncia um novo álbum, o 17º da conta pessoal: chama-se Egypt Station e estará nas lojas a 7 de Setembro. O primeiro single contém um poderoso tema rock, Come On to Me, e uma balada de sedutor primitivismo, I Don't Know — para já, temos os respectivos lyric videos.




>>> Site oficial de Paul McCartney.

domingo, junho 24, 2018

A IMAGEM: Elliott Erwitt, 1950

ELLIOTT ERWITT
Pensilvânia, Pittsburgh
1950

* Bergman + Bernstein
— SOUND + VISION Magazine, FNAC [hoje]


Cinema e música cruzam-se nas celebrações do centenário de Ingmar Bergman e Leonard Bernstein, ambos nascidos em 1918 — propomos uma viagem, com imagens e sons, pelas suas obras fascinantes.

* FNAC (Chiado) — hoje, 24 Junho, 18h30

Parábola sexual, comédia romântica (1/2)

Com Amor, Simon é aquilo que se poderia chamar uma parábola sexual que não abdica de ser uma comédia romântica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Hollywood propõe retrato de jovem gay em tom de comédia'.

Quando é que tudo começou? Talvez com o advento da MTV, no começo da década de 1980. Ou antes, na viragem para os turbulentos anos 60, com Elvis Presley a ensinar-nos que os corpos também têm ritmos próprios, inventando razões que a razão desconhece... Uma coisa é certa: fomos assistindo à metódica consolidação de uma cultura juvenil que, agora, neste nosso não demasiado sereno século XXI, existe, de uma só vez, como universo de muitas introspecções, caldeirão de valores sociais e... mercado global.
Evitemos, por isso, os esquematismos de horário nobre — estamos perante uma paisagem imensa (feita de música, jogos, telemóveis, filmes, livros, etc.) que resiste a generalizações fáceis. Reparemos apenas na tocante singularidade narrativa, cúmplice de uma discreta inteligência dramática, de um filme como Com Amor, Simon. Afinal, mesmo em tempos de muitas e salutares abordagens das complexidades da vida sexual, não é todos os dias que deparamos com o retrato de um jovem homossexual que não quer “sair do armário”.
Realizado por Greg Berlanti, o filme conserva uma componente essencial do romance de Becky Albertalli em que se baseia, editado entre nós como O Coração de Simon Contra o Mundo, agora relançado com o título do filme (Porto Editora): Simon, interpretado por Nick Robinson, é um estudante de liceu da cidade de Atlanta, Georgia, que nunca revelou à família ou aos colegas o facto de ser homossexual. O único “lugar” em que se assume é o mundo virtual: ao saber da existência de um misterioso “Blue” que, na Internet, se apresenta como homossexual, Simon cria uma identidade fictícia (“Jacques”) e começa a corresponder-se, por e-mail, com “Blue”...

Comédia romântica

Com Amor, Simon surge num contexto cultural e de consumo (e uma coisa envolve sempre a outra) em que vamos deparando com muitas e contrastadas narrativas apostadas em discutir as formas mais tradicionais de abordagem dos comportamentos sexuais. E não deixa de ser curioso referir que a autora do romance, actualmente com 35 anos (a primeira edição do livro surgiu em 2015), seja formada em psicologia, tendo trabalhado como terapista até 2012 — em qualquer caso, Albertalli faz questão em sublinhar o carácter confidencial dos tratamentos que conduziu, recusando qualquer paralelismo entre os seus pacientes e as personagens do livro e do filme.
Na introdução a uma entrevista com Albertalli publicada em The Hollywood Reporter, o jornalista Michael Waters arrisca mesmo afirmar que Com Amor, Simon vai entrar na história como “o primeiro filme sobre um romance gay e adolescente produzido por um grande estúdio de Hollywood”. Talvez. Ainda assim, em tal descrição, a pedra de toque não será exactamente a condição “gay e adolescente” do protagonista, mas sim o facto de estarmos perante um “romance”.
Assim é: para além de qualquer universo militante ou político em que o possamos inscrever, Com Amor, Simon é... uma comédia romântica. E talvez seja essa a sua fundamental lição cinematográfica e humana: a de que o cinema de Hollywood, mesmo nos seus registos (ditos) mais ligeiros, continua a ser capaz de nos envolver nos destinos de personagens “como todos nós”, seja qual for o seu sexo, orientação sexual ou cor da pele.

sábado, junho 23, 2018

Jorge Jesus não foi para a Coreia

FRANCIS BACON
Cabeça de Homem
1960
A. Uma das mais curiosas observações que algumas pessoas têm feito publicamente sobre Bruno de Carvalho tem a ver com aquilo que será a sua incapacidade para lidar com o mundo à sua volta: "Bruno de Carvalho nega a própria realidade..."

B. Discutir as convulsões do Sporting (ou qualquer outro tema dito futebolístico) não tem a ver, nem de longe nem de perto, com estas breves linhas. Vale a pena, isso sim, perguntar porque é que aqueles que evocam a pertinência daquilo a que chamam realidade não reconhecem a pergunta/espelho que atraem. A saber: como é que esta realidade gerou a personagem pública de Bruno de Carvalho?

C. Consequências práticas: há longos meses, depois das investigações em torno do Benfica (como, noutro contexto, em torno do F. C. Porto), a crise no Sporting foi promovida a questão nacional, sendo tratada como uma catástrofe iminente da nossa identidade como povo e nação. O futebol passou mesmo a ser apresentado como a nossa única razão de existir — e para existir. Hoje, por exemplo, lemos que as duas Coreias se mostram disponíveis para reuniões no sentido de reunificar as famílias separadas pela guerra de 1950-53 — o certo é que neste nosso cantinho (que se quer) europeu, a notícia mais transversal do dia é a assembleia geral do Sporting... Aliás, não: o grande destaque é a partida de Jorge Jesus para a Arábia Saudita. Pois.

8 mulheres à procura de um filme

Belo e sugestivo cartaz... E o resto? Ocean's 8 tenta repetir Ocean's 11, agora em tom feminino: as referências são boas, mas falta o cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Junho), com o título 'Foi você que disse Billy Wilder?'.

Face à monótona colagem de anedotas, disfarçada de filme de aventuras mais ou menos policiais, que encontramos em Ocean’s 8, talvez seja inevitável reconhecer que o filme irá dar entrada numa certa história “sociológica” destes nossos tempos conturbados. Daqui a muitas décadas, os investigadores talvez o venham a reconhecer (e celebrar) como exemplo de uma revalorização de temáticas femininas, indissociável de todo um processo de denúncia de desigualdades no interior do sistema de Hollywood.
Será que tais investigadores formularão a mais básica questão de linguagem? A saber: em que é que a figuração, por actrizes, de estereótipos de espectáculo tradicionalmente masculinos engrandece os valores femininos, eventualmente feministas?
Convenhamos que o espaço mental para tal discussão quase não existe. Porque a simples chamada de atenção para a necessidade de pensar as linguagens que usamos (homens, mulheres ou extraterrestres) está condenada a atrair uma qualquer gritaria “social”, denunciando aquilo que seria uma tentativa de branqueamento dos crimes de que são acusados Harvey Weinstein e alguns outros homens de Hollywood.
Como? O drama é terrível. Por um lado, Ocean’s 8 nem sequer consegue retomar o humor de Steven Soderbergh na série iniciada com Ocean’s Eleven (2001), que desmontava com contagiante alegria muitos lugares-comuns machistas e até, pequeno detalhe, fabricando uma personagem de radiosa independência e inteligência interpretada por Julia Roberts. Por outro lado, na análise do frente a frente masculino/feminino, suas maravilhas e equívocos, um filme como Quanto Mais Quente Melhor (1959) supera todos os espectáculos politicamente esquálidos que hoje se fabricam. Em boa verdade, já estivemos mais longe de Billy Wilder ser inscrito em alguma lista negra...

>>> Trailer de Quanto Mais Quente Melhor.

sexta-feira, junho 22, 2018

A IMAGEM: Ziga Mihelcic, 2018

ZIGA MIHELCIC
Jessica Chastain
Vogue Arabia, 2018

St. Vincent, + fast

Segundo a própria St. Vincent, a sua canção Slow Disco nasceu para viver "muitas vidas diferentes". De tal modo que até já criou uma versão "acelerada", adequadamente intitulada Fast Slow Disco. É essa versão que surge, agora, em ambiente de clube gay de Nova Iorque, num teledisco de contagiante energia — realização de Zev Deans.

quinta-feira, junho 21, 2018

Imagens e sons do século XXI

"Eu não vejo televisão" — eis uma afirmação corrente que importa discutir. Eduardo Cintra Torres parte dessas palavras supostamente evidentes para mostrar e demonstrar como, através delas e, sobretudo, para além delas, podemos aceder a um universo multifacetado em que, em última instância, se discute a nossa própria condição de espectadores. Com componentes que passam por questões tão marcantes, e também tão universais, como:
— as novas condições de consumo dos conteúdos televisivos (Internet, boxes, etc.), já não dependentes da obrigação de seguir as emissões em directo;
— a própria fragilização do conceito de "canais generalistas";
— a permanente e multifacetada contaminação de muitas formas de ficção, não poucas vezes relativizando a "distância" entre televisão e cinema.
Na sua brevidade, Televisão do século XXI (Universidade Católica Editora) propõe uma síntese tão incisiva quanto pedagógica sobre aquilo que é, hoje em dia, o audiovisual. Porventura levando-nos a reconhecer que a própria palavra "audiovisual" se tornou inadequada — ou, pelo menos, insuficiente — para lidarmos com as paisagens imensas, tão globais quanto particulares, tão presentes quanto futuristas, de imagens e sons. 

quarta-feira, junho 20, 2018

"Last Exit Before Brexit"

O escritor e filósofo francês Bernard-Henri Lévy encara o Brexit como um desastre anunciado (ainda que não consumado...), não apenas para a identidade nacional do Reino Unido, mas para a coesão cultural, económica e política da Europa. Para dar conta da sua visão, escreveu uma peça de teatro, Last Exit Before Brexit, um monólogo que ele próprio tem interpretado, nomeadamente em Londres, no palco do Cadogan Hall. Por altura dessa performance, Lévy foi convidado de Christiane Amanpour, nos estúdios londrinos da CNN — da Europa aos EUA, passando por Macron e Trump, uma conversa fascinante.

Lichtenstein no Colombo

1. Em matéria de dinâmica cultural, o cliché dominante — amplamente sustentado pelos partidos políticos, direitas e esquerdas confundidas — esgota-se num piedoso voluntarismo. A saber: essa dinâmica resultaria apenas da acção de acontecimentos específicos e circuitos especializados. Tal cliché é incapaz, por exemplo, de pensar uma evidência (com mais de 40 anos...) do contexto português: como discutir os problemas culturais e financeiros (é a mesma coisa) do cinema português omitindo qualquer referência ao poder normativo das telenovelas?

2. A evocação de tais questões vem a propósito deste curioso e desconcertante testemunho cultural. Assim, através da principal chamada de capa do jornal Destak, ficamos a saber que um conjunto de obras de Roy Lichtenstein (1923-1997), figura emblemática da Pop Art, está disponível no Centro Comercial Colombo (até 23 de Setembro).

3. Sinais destes tempos de muitos cruzamentos: um artista consagrado pelos compêndios culturais está exposto num centro comercial. Mais do que isso: o acontecimento surge divulgado, não através de uma qualquer publicação ou circuito "especializado", mas sim nas páginas de um jornal gratuito. Evitemos, por isso, a facilidade televisiva dos "prós" e "contras" (ou, como no futebol, a procura de um "culpado" para cada golo marcado). Digamos apenas que o mundo em que vivemos é feito destas contaminações — e também que é legítimo supormos que Lichtenstein seria o último a queixar-se.

>>> Site oficial da Fundação Roy Lichtenstein.

APV na Cinemateca

[ Cinemateca Portuguesa ]
A filmografia de António-Pedro Vasconcelos é acontecimento central, na Cinemateca, até finais de Julho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Junho), com o título 'Elogio do velho Cinema Novo'.

Mais do que nunca, importa lidar com a herança do Cinema Novo português para além de qualquer facilidade nostálgica. Revelada nas décadas de 1960/70, a geração de cineastas que emulou a ousadia criativa da Nova Vaga francesa deixou um legado cuja energia não se dissipou. Mais do que isso, a sua memória estética e ideológica enriquece o debate actual sobre as encruzilhadas do cinema. Prova muito real dessa energia: a filmografia de António-Pedro Vasconcelos (n. 1939), actualmente em retrospectiva na Cinemateca (até final de Julho).
Percorrer essa filmografia será tanto mais estimulante quanto o trabalho de APV há muito se libertou de qualquer dependência simbólica das suas raízes artísticas. Aliás, como realizador e polemista, ele tem sido uma personalidade muito interveniente na questão (contemporânea, por excelência) das relações narrativas e financeiras entre cinema e televisão.
É bem provável que a maioria dos espectadores associe o seu nome ao fenómeno que foi o filme O Lugar do Morto (1984), um “thriller” de sucesso protagonizado por Ana Zanatti e Pedro Oliveira. Sempre me pareceu redutora a visão do filme como um exemplo de conciliação entre “qualidade” e impacto “comercial” (acabando por atrair os fundamentalismos mais conflituosos). De facto, tal visão minimiza algo de essencial no gosto narrativo de APV. A saber: a procura de um romanesco em grande parte ligado a lições de mestres de Hollywood, capaz de conciliar o apelo romântico com a atenção crítica à evolução dos usos e costumes sociais. Exemplo mais próximo é, a meu ver, a subtileza emocional e acutilância crítica do seu Call Girl (2007).
Curiosamente, tal gosto tem levado APV a experimentar singulares relações com as convulsões da história colectiva. O exemplo mais sugestivo será Adeus, Até ao Meu Regresso (1974), incontornável memória da nossa Guerra Colonial e, em particular, como o título indica, das “mensagens de Natal” dos soldados difundidas pela televisão do Estado. Mas importa não esquecer, num registo bem diverso, Aqui d’El Rei! (1991), por certo o mais ambicioso projecto de produção de APV, mini-série televisiva (que também teve uma versão para cinema) sobre a expedição de Mouzinho de Albuquerque a Moçambique, em finais do século XIX, para capturar Gungunhana [video, arquivo RTP].
No seu ziguezague temático e criativo, a obra de APV nunca abdicou de questionar os valores do ser (ou não ser) português. Nessa medida, cumpre os desígnios do Cinema Novo, transfigurando-os para as convulsões do tempo presente.

terça-feira, junho 19, 2018

Martin Bregman (1926 - 2018)

Produtor americano muito ligado à carreira de Al Pacino, Martin Bregman faleceu no dia 16 de Junho, em Nova Iorque, vítima de hemorragia cerebral — contava 92 anos.
Depois de ter trabalhado no sector imobiliário, começou a representar diversos actores, incluindo Al Pacino, Barbra Streisand e Bette Midler. Foi com Serpico (1973), de Sidney Lumet, baseado numa personagem verídica da polícia de Nova Iorque, que Bregman se estreou como produtor, oferecendo o papel principal a Pacino — Bregman descobrira-o, poucos anos antes, numa produção off-Broadway, tendo-lhe conseguido o seu primeiro papel importante em cinema no filme Pânico em Needle Park (1971), de Jerry Schatzberg.
Com uma relação especial com Pacino e Lumet, produziu também Um Dia de Cão (1975), exemplo maior de um realismo à flor da pele, indissociável das convulsões sociais e simbólicas da década de 70 [trailer]. Scarface (1983), de Brian De Palma, Perigosa Sedução (1989), de Harold Becker, e Perseguido pelo Passado (1993), de novo de De Palma, todos eles com Pacino, são outros momentos marcantes da sua filmografia. Com Um Dia de Cão obteve a sua única nomeação para um Oscar (melhor filme).


>>> Obituário no New York Times.

segunda-feira, junho 18, 2018

Beyoncé + Jay-Z

Demonstração de poder, sem dúvida. Poder mediático e figurativo, numa palavra, simbólico: Beyoncé e Jay-Z encenam-se no Museu do Louvre a cantar APESHIT. Não há visitantes, apenas os figurantes/bailarinos da sua teatralidade. Talvez seja essa a forma limite, perversamente utópica, de poder contemporâneo — obrigar os consumidores a desertar.
A canção, escrita e produzida com Pharrell Williams, é o cartão de visita de um álbum surpresa: Everything Is Love. Com assinatura conjugal: The Carters.

Eva, aliás, Isabelle Huppert

Eva é mais um encontro magnífico entre Isabelle Huppert e o realizador Benoît Jacquot — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Junho), com o título 'Entre masculino e feminino'.

Há poucas semanas, o site IndieWire dava notícia de um “estudo” empenhado em provar uma bizarra correspondência: os filmes da saga Star Wars que dão mais tempo às personagens femininas seriam os que tinham obtido maiores receitas nas salas dos EUA. A demonstração era involuntariamente ridícula, já que a simples relativização da inflação permite perceber que o primeiro título, lançado em 1977 e considerado o de menor “exposição” feminina é, de longe, o que vendeu mais bilhetes. Mas o mais grave decorria da grosseira aritmética proposta: a figuração do feminino seria sancionada pelos movimentos do dinheiro.
Isto para dizer que Eva, o novo e magnífico filme de Benoît Jacquot, nunca encaixará em qualquer cálculo do género. Ainda bem, digo eu. Em primeiro lugar, porque ainda há filmes que é possível descobrir sem sermos agredidos por uma visão economicista do cinema que reduz toda e qualquer forma de criatividade a contas de “milhões” (ou proezas de “efeitos especiais”). Depois, porque a personagem interpretada por Isabelle Huppert resiste a ser reduzida a qualquer padrão dramático pueril e purificador.
Conhecemos o pano de fundo mediático sobre os abusos cometidos por alguns homens contra algumas mulheres — e nada pode minimizar a importância da identificação dos crimes cometidos e da sua exemplar punição. Em todo o caso, o que quase todos os militantismos ignoram é o facto de ficções como Eva, centrada no fascínio de um homem (Gaspard Ulliel) por uma prostituta (Huppert), funcionarem como espelho amargo de um logro partilhado por masculino e feminino. A saber: Jacquot, autor de filmes belíssimos como As Asas da Pomba (1981), Adolphe (2002) ou Adeus, Minha Rainha (2012), continua a ser um observador terno e cruel do desejo e suas ilusões, do desejo como ilusão.

domingo, junho 17, 2018

A IMAGEM: Steven Klein, 2018

STEVEN KLEIN
Ace
2018

Mensagens televisivas [citação]

>>> Que misteriosa energia imperscrutável faz com que quando se quer utilizar a televisão para fazer passar uma mensagem, a única coisa que passa é, finalmente, a própria televisão?

La Démocratie Virtuelle

Bruno de Carvalho não está
num filme de Manoel de Oliveira...

I. Cada vez que vejo Bruno de Carvalho na televisão, numa conferência de imprensa, não penso em futebol. Penso nas vozes, ora indignadas, ora chocarreiras, dos que dizem que os filmes de Manoel de Oliveira são feitos de longos planos fixos de 10 minutos (antes do digital, era a duração máxima de uma bobine de película...), alguns deles garantindo tal "verdade" ao mesmo tempo que proclamam que nunca viram tais filmes.

II. Onde estão essas vozes para comentar os longos planos fixos (10, 15, 20 minutos...) que são difundidos nos pequenos ecrãs quando Bruno de Carvalho dá uma conferência de imprensa? Aliás, ele está longe de ser o único protagonista de tal fenómeno. Qualquer personalidade do mundo do futebol parece ter o direito (automático, indiscutível, irrevogável) de ocupar esses ecrãs ao longo de infinitas horas, não poucas vezes interpretando os tais planos fixos.

III. Como espectador, confesso que já nem compreendo o que se diz e repete, repete, repete... como assunto futebolístico. Mas uma coisa é certa: se os ecrãs privilegiam tais matérias, isso decorre do facto de a elas atribuírem o valor de uma ideia de futebol.

IV. Que ideia é essa? Em boa verdade, é uma ideia cultural, poderosa como mais nenhuma outra. Ou não é verdade que, através do futebol, somos todos os dias confrontados com os méritos da vocação, os meandros da justiça e os valores da portugalidade?

V. No limite, o futebol tornou-se mesmo o único discurso cultural que tem à sua disposição todo o espaço audiovisual — entenda-se: social — para circular como princípio compulsivo da nossa identidade colectiva. O que, bem entendido, não nos garante que haja muitos novos espectadores, disponíveis e sem preconceitos, para ver, realmente ver, os filmes de Manoel de Oliveira.

sábado, junho 16, 2018

Bayona (não) é herdeiro de Spielberg (2/2)

Longe vão os tempos da criatividade de Steven Spielberg em Parque Jurássico: a nova sequela tem muito barulho para nada — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Junho), com o título 'Um circo audiovisual'.

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A decomposição de alguns modelos de espectáculo cinematográfico detecta-se em todos os pormenores. Assim, por exemplo, o título português de Jurassic World: Fallen Kingdom. De facto, Mundo Jurássico: Reino Caído acaba por ser uma tradução tão “literal” que consegue apagar a sugestão de um reino em processo de queda. Foi mesmo dispensada a expressão mais apelativa: “A queda de um reino”.
Olhamos para as mais de duas horas em que o filme se arrasta, multiplicando ruídos e esgares dos dinossauros, e ficamos enredados na pergunta: afinal, qual é a aventura que nos querem vender?
Como numa psicanálise em que alguém, perversamente, deixou aberta a porta do consultório, o filme acaba por desmontar-se através de uma cena involuntariamente ridícula. Assistimos, assim, a um leilão em que os proprietários dos dinossauros vendem cada um dos seus monstros, devidamente licitados por homens de negócios e políticos provenientes de todo o mundo (com russos e diversas figuras asiáticas para reforçar a “actualidade”). Dir-se-ia que os criadores do filme podiam integrar a plateia de compradores: a única coisa que os interessa é organizar um catálogo de monstros para exibição gratuita num circo audiovisual sem ideias dramáticas.
Numa das poucas cenas com algum sentido do espaço vemos Chris Pratt e Bryce Dallas Howard a extrair sangue de um bicho encerrado numa gaiola gigante... E um dos segredos da história é o facto de a manipulação genética ter concebido um novo monstro... Como é que recebemos essa cena e tal segredo? Pois bem, com o tédio de quem já tinha sido “informado” da sua existência pelo trailer do filme... Moral da história: espera-se que o espectador seja uma marioneta sem sensibilidade, limitando-se a ir ao cinema para “descobrir” aquilo que já sabe.

quinta-feira, junho 14, 2018

A IMAGEM: Sarah Moon, 2018

SARAH MOON
Luping Wang [Armani]
2018

O Mundial por Sergey Ponomarev

Praça Manezhnaya, Moscovo, 13 Junho
Já distinguido com um prémio Pulitzer, pelo seu trabalho sobre os refugiados na Europa, o fotógrafo russo Sergey Ponomarev está a acompanhar o Mundial de Futebol para o diário francês Libération — alguns sugestivos instantâneos para lá dos fragmentos mais ou menos acelerados que predominam nas televisões.
Moscovo, 13 Junho

Fritz Lang na televisão

Gloria Grahame e Glenn Ford
Fritz Lang a passar nos TVCine: uma belíssima (re)descoberta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Junho), com o título 'O Bem e o Mal segundo Fritz Lang'.

Será um efeito de (de)formação profissional, mas sempre que revejo um filme tão admirável como Desejo Humano (1954), de Fritz Lang, não posso deixar de pensar no velho preconceito que tende a menosprezar o cinema rodado em imagens a preto e branco. Bem sabemos que as raízes de tal preconceito estão, em grande parte, no triunfo de um certo novo-riquismo cultural há várias décadas favorecido pelo advento da televisão a cores. Em todo o caso, como é possível que se tenha instalado como coisa “natural” a ignorância de uma boa metade (ou mais) da história do cinema?
Desejo Humano está a passar nos canais TVCine, além do mais numa cópia que preserva a sofisticada direcção fotográfica de Burnett Guffey, de alguma maneira reflectindo as memórias “expressionistas” dos filmes que Lang dirigira na Alemanha (com inevitável destaque para Metropolis e M – Matou, respectivamente em 1927 e 1931).
Adaptando a um contexto americano o romance La Bête Humaine, de Émile Zola (que em 1938 estivera na base do clássico francês A Fera Humana, de Jean Renoir, com Jean Gabin), Desejo Humano tem chancela da Columbia Pictures, podendo exemplificar uma certa produção média com que, na altura, Hollywood ia cruzando as regras do filme negro com as nuances do melodrama.
Escusado será dizer que o trabalho de Lang é tudo menos mediano. E tanto mais quanto a precisão realista do detalhe coexiste com uma concepção abstracta da narrativa, desembocando numa desencantada parábola filosófica sobre a fragilidade do Bem e a omnipresença do Mal. Ou ainda: esta é uma história sobre as componentes malignas do desejo (o adjectivo “humano” do título é quase uma redundância), numa paisagem de paixões e traições em que o romantismo surge amaldiçoado pela mais descarnada pulsão de morte.
Simplificando (e simplificando muito...), digamos que esta começa por ser a história de um par interpretado por Gloria Grahame e Broderick Crawford: na sequência da perda do seu emprego nos comboios, movido pela cegueira do ciúme, ele mata um homem; o crime acontece num comboio em que também viaja um dos seus companheiros de trabalho, Glenn Ford — através do seu envolvimento com a mulher, ele será uma ambígua testemunha do ocorrido...
Provavelmente, nas mãos de um cineasta vulgar, este seria apenas um enigma mais ou menos policial sobre a exposição pública de um crime. Encenada por Lang, estamos perante uma tragédia íntima sobre a muito humana desumanidade do desejo, pontuada pelas infinitas nuances das imagens a preto e branco.

Dumbo + Disney + Tim Burton

Apostados em revitalizar "em imagem real" (e muito efeitos digitais...) alguns dos seus títulos clássicos, os estúdios Disney têm já agendada, para Março de 2019, uma nova versão de Dumbo, 78 anos passados sobre o desenho animado original. O primeiro trailer é uma pequena proeza de sedução — pormenor a ter em conta: a realização tem assinatura de Tim Burton. Aqui ficam as novas imagens, logo seguidas do trailer do filme de 1941.



quarta-feira, junho 13, 2018

Bayona (não) é herdeiro de Spielberg (1/2)

Longe vão os tempos da criatividade de Steven Spielberg em Parque Jurássico: a nova sequela tem muito barulho para nada — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Junho), com o título 'Dinossauros estão politicamente correctos'.

Já lá vai um quarto de século. Foi em 1993 que Steven Spielberg, inspirando-se num livro de Michael Crichton, dirigiu o admirável Parque Jurássico (no mesmo ano lançou A Lista de Schindler). Para além da revolução nos efeitos especiais que o filme liderou (os dinossauros pareciam mesmo carnais...), o essencial passava pelo relançamento de uma velha mitologia literária e filosófica. A saber: quando os seres humanos tentam sobrepor-se às leis da natureza, gerando vida através de manipulações tecnológicas, até que ponto não é a própria identidade humana que está ameaçada?
Entretanto, uma série de prolongamentos da saga original gerou aquilo que os tesoureiros da indústria, secundados pelos profissionais de marketing, tanto gostam: uma “franchise”. De tal modo que o novo Mundo Jurássico: Reino Caído é já o quinto título da série, com a novidade de ter a realização assinada por um espanhol, J. A. Bayona.
Novidade muito relativa, entenda-se. Isto porque depois do segundo filme, O Mundo Perdido (1997), também dirigido por Spielberg, tão bom ou melhor que o primeiro, assistiu-se ao consumar dessa maldição que tem assombrado muitas “franchises”: em vez de se procurarem histórias realmente originais, com personagens consistentes, entrega-se tudo ou quase tudo às equipas de efeitos especiais... Os resultados serão tecnicamente sofisticados, mas falta-lhes sentido de aventura e, no limite, dimensão humana.
Dir-se-ia que o espírito politicamente correcto deste quinto filme até poderia ter servido para curiosas variações dramáticas. De facto, já não se trata de lidar com as ameaças inerentes à “recriação” dos dinossauros. Agora, os dinossauros são um dado adquirido, sendo fundamental defendê-los da ameaça de um vulcão e, mais do que isso, da avareza de investidores e corporações que neles vêm apenas uma fonte de lucro para actividades mais ou menos lúdicas (ou até para novas formas de guerra).
Podemos admirar os peculiares talentos de Bayona, responsável por títulos como O Impossível (2012), sobre o tsunami de 2004 na Tailândia, ou Sete Minutos Depois da Meia-Noite (2016), um conto fantástico baseado numa obra de Patrick Ness. O certo é que, neste caso, predomina a “obrigação” de acumular cenas que rentabilizem os dinossauros digitais, numa lógica de monótona repetição que, em última instância, se desinteressa pelas singularidades das personagens. Decididamente, o que faz o grande espectáculo não é a mera acumulação de meios, mas o gosto de contar histórias.

David Douglas Duncan (1916 - 2018)

David Douglas Duncan fotografado por Joe McNally
Notável fotógrafo de contextos de guerra, o americano David Douglas Duncan faleceu no dia 7 de Junho em Grasse, França — contava 102 anos.
Natural de Kansas City, foi no jornal The Kansas City Star que começou a sua carreira de fotojornalista. Fotografou momentos emblemáticos da Segunda Guerra Mundial, incluindo a cerimónia de rendição oficial do Japão, mas seriam sobretudo as suas imagens da Guerra da Coreia que consolidaram o seu prestígio, definindo-o como um notável observador dos conflitos militares através das nuances individuais. Especialmente célebre é a sua foto do marine cap. Francis 'Ike' Fenton, na Coreia, em 1950, ao ser informado de que a sua companhia está quase sem munições — o rosto de Fenton está na capa de My 20th Century, um dos seus livros mais célebres.
Colaborou frequentemente com a Life e o National Geographic Magazine. Esteve também no Vietname, tendo publicado dois livros que reflectiam a sua crescente discordância do envolvimento militar dos EUA: I Protest! (1968) e War Without Heroes (1970). Vários outros volumes ilustram a sua amizade com Pablo Picasso — entre eles está Picasso & Lump: A Dachshund's Odyssey (2006), centrado no basset do pintor.

Cerimónia de rendição do Japão, 2 Setembro 1945
Marines no Vietname, 8 Fevereiro 1968
[Arcade Publishing, 2015]
Picasso e Lump, 1957
>>> Obituário no New York Times.