quarta-feira, junho 20, 2018

APV na Cinemateca

[ Cinemateca Portuguesa ]
A filmografia de António-Pedro Vasconcelos é acontecimento central, na Cinemateca, até finais de Julho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Junho), com o título 'Elogio do velho Cinema Novo'.

Mais do que nunca, importa lidar com a herança do Cinema Novo português para além de qualquer facilidade nostálgica. Revelada nas décadas de 1960/70, a geração de cineastas que emulou a ousadia criativa da Nova Vaga francesa deixou um legado cuja energia não se dissipou. Mais do que isso, a sua memória estética e ideológica enriquece o debate actual sobre as encruzilhadas do cinema. Prova muito real dessa energia: a filmografia de António-Pedro Vasconcelos (n. 1939), actualmente em retrospectiva na Cinemateca (até final de Julho).
Percorrer essa filmografia será tanto mais estimulante quanto o trabalho de APV há muito se libertou de qualquer dependência simbólica das suas raízes artísticas. Aliás, como realizador e polemista, ele tem sido uma personalidade muito interveniente na questão (contemporânea, por excelência) das relações narrativas e financeiras entre cinema e televisão.
É bem provável que a maioria dos espectadores associe o seu nome ao fenómeno que foi o filme O Lugar do Morto (1984), um “thriller” de sucesso protagonizado por Ana Zanatti e Pedro Oliveira. Sempre me pareceu redutora a visão do filme como um exemplo de conciliação entre “qualidade” e impacto “comercial” (acabando por atrair os fundamentalismos mais conflituosos). De facto, tal visão minimiza algo de essencial no gosto narrativo de APV. A saber: a procura de um romanesco em grande parte ligado a lições de mestres de Hollywood, capaz de conciliar o apelo romântico com a atenção crítica à evolução dos usos e costumes sociais. Exemplo mais próximo é, a meu ver, a subtileza emocional e acutilância crítica do seu Call Girl (2007).
Curiosamente, tal gosto tem levado APV a experimentar singulares relações com as convulsões da história colectiva. O exemplo mais sugestivo será Adeus, Até ao Meu Regresso (1974), incontornável memória da nossa Guerra Colonial e, em particular, como o título indica, das “mensagens de Natal” dos soldados difundidas pela televisão do Estado. Mas importa não esquecer, num registo bem diverso, Aqui d’El Rei! (1991), por certo o mais ambicioso projecto de produção de APV, mini-série televisiva (que também teve uma versão para cinema) sobre a expedição de Mouzinho de Albuquerque a Moçambique, em finais do século XIX, para capturar Gungunhana [video, arquivo RTP].
No seu ziguezague temático e criativo, a obra de APV nunca abdicou de questionar os valores do ser (ou não ser) português. Nessa medida, cumpre os desígnios do Cinema Novo, transfigurando-os para as convulsões do tempo presente.