Com Amor, Simon é aquilo que se poderia chamar uma parábola sexual que não abdica de ser uma comédia romântica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Junho), com o título 'Hollywood propõe retrato de jovem gay em tom de comédia'.
Quando é que tudo começou? Talvez com o advento da MTV, no começo da década de 1980. Ou antes, na viragem para os turbulentos anos 60, com Elvis Presley a ensinar-nos que os corpos também têm ritmos próprios, inventando razões que a razão desconhece... Uma coisa é certa: fomos assistindo à metódica consolidação de uma cultura juvenil que, agora, neste nosso não demasiado sereno século XXI, existe, de uma só vez, como universo de muitas introspecções, caldeirão de valores sociais e... mercado global.
Evitemos, por isso, os esquematismos de horário nobre — estamos perante uma paisagem imensa (feita de música, jogos, telemóveis, filmes, livros, etc.) que resiste a generalizações fáceis. Reparemos apenas na tocante singularidade narrativa, cúmplice de uma discreta inteligência dramática, de um filme como Com Amor, Simon. Afinal, mesmo em tempos de muitas e salutares abordagens das complexidades da vida sexual, não é todos os dias que deparamos com o retrato de um jovem homossexual que não quer “sair do armário”.
Realizado por Greg Berlanti, o filme conserva uma componente essencial do romance de Becky Albertalli em que se baseia, editado entre nós como O Coração de Simon Contra o Mundo, agora relançado com o título do filme (Porto Editora): Simon, interpretado por Nick Robinson, é um estudante de liceu da cidade de Atlanta, Georgia, que nunca revelou à família ou aos colegas o facto de ser homossexual. O único “lugar” em que se assume é o mundo virtual: ao saber da existência de um misterioso “Blue” que, na Internet, se apresenta como homossexual, Simon cria uma identidade fictícia (“Jacques”) e começa a corresponder-se, por e-mail, com “Blue”...
Com Amor, Simon surge num contexto cultural e de consumo (e uma coisa envolve sempre a outra) em que vamos deparando com muitas e contrastadas narrativas apostadas em discutir as formas mais tradicionais de abordagem dos comportamentos sexuais. E não deixa de ser curioso referir que a autora do romance, actualmente com 35 anos (a primeira edição do livro surgiu em 2015), seja formada em psicologia, tendo trabalhado como terapista até 2012 — em qualquer caso, Albertalli faz questão em sublinhar o carácter confidencial dos tratamentos que conduziu, recusando qualquer paralelismo entre os seus pacientes e as personagens do livro e do filme.
Na introdução a uma entrevista com Albertalli publicada em The Hollywood Reporter, o jornalista Michael Waters arrisca mesmo afirmar que Com Amor, Simon vai entrar na história como “o primeiro filme sobre um romance gay e adolescente produzido por um grande estúdio de Hollywood”. Talvez. Ainda assim, em tal descrição, a pedra de toque não será exactamente a condição “gay e adolescente” do protagonista, mas sim o facto de estarmos perante um “romance”.
Assim é: para além de qualquer universo militante ou político em que o possamos inscrever, Com Amor, Simon é... uma comédia romântica. E talvez seja essa a sua fundamental lição cinematográfica e humana: a de que o cinema de Hollywood, mesmo nos seus registos (ditos) mais ligeiros, continua a ser capaz de nos envolver nos destinos de personagens “como todos nós”, seja qual for o seu sexo, orientação sexual ou cor da pele.