Homayoun Ershadi em O Sabor da Cereja |
O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, regressou em cópia restaurada — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Outubro), com o título 'Kiarostami contra a publicidade'.
Posso assumir a responsabilidade que me cabe na percepção corrente do cinema (necessariamente localizada e limitada), mas penso muitas vezes que, ao falarmos dos filmes, falamos sempre pouco de... cinema. Sinal dos tempos, sem dúvida, desespero de uma sociedade de fútil aceleração informativa que tende a desqualificar o simples gosto pela singularidade das linguagens — a começar pela linguagem cinematográfica.
Pensei neste drama (que, de modo mais ou menos consciente, todos partilhamos) perante a reposição, em cópia restaurada, do maravilhoso O Sabor da Cereja, do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), distinguido em 1997 com a Palma de Ouro de Cannes (ex-aequo com A Enguia, do japonês Shohei Imamura). Pensei, sobretudo, no facto de qualquer corrente descrição “psicológica” se revelar insuficiente para dar conta do modo como o filme nos pode afectar e comover.
Abbas Kiarostami |
Dir-se-ia que esperamos algum elemento (“psicológico”, precisamente) para enquadrar a gélida demanda do protagonista, um homem de nome Badii. Isto porque ele não está apenas empenhado em suicidar-se. Dialogando com aqueles que transporta no seu veículo — um jovem soldado, um estudante de teologia, um taxidermista que exalta as glórias naturais (incluindo o sabor da cereja) —, Badii quer que alguém lhe garanta que o vai sepultar. Kiarostami encena-o como um buraco negro, impossível de transformar em “tema” ou “símbolo” do que quer que seja.
Observe-se o rosto impassível de Badii, interpretado por esse brilhante actor que é Homayoun Ershadi. O que nele deciframos, ou julgamos decifrar, não envolve qualquer racionalização do seu comportamento (nem do nosso olhar, importa acrescentar). Badii/Ershadi acaba por se impor como um aliado do próprio cinema, dessa capacidade insólita de registar o movimento da vida, pressentindo a nitidez indizível da morte.
Reecontramos, assim, a máxima acarinhada por Jean Cocteau: “O cinema filma a morte no trabalho”. Princípio difícil, sem dúvida. Porque as medidas dominantes do tempo não são de vida nem de morte, mas apenas de acumulação de clímaxes. É esse o método principal do espaço televisivo, todos os dias desmesuradamente ampliado pelos circuitos da Internet: o que mais conta é a criação de alguma vibração efémera, logo substituída por outra também de fugaz intensidade. Nesta perspectiva, a circulação dominante das imagens cedeu aos princípios e métodos da publicidade — Kiarostami é o contrário da publicidade, eis o mais justo retrato político que dele podemos fazer.