1. Vista em vários canais televisivos e, depois, amplamente documentada nos mais diversos locais da Internet, esta situação condensa a pobreza estrutural do nosso tecido político.
2. A questão não está, entenda-se, nas "justificações" mais ou menos elaboradas para o facto de Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, ter surgido com surpreendente celeridade em Tires, na zona onde, como todos sabemos, ocorreu um acidente com uma avioneta. Não se trata de fazer juízos de valor sobre a "maior" ou "menor" gravidade do acidente, daí entrando em extrapolações mais ou menos infantis sobre se o Presidente "devia" ou "não devia" ter estado onde esteve — nem se discute, muito menos, a boa vontade afectiva que o terá motivado.
3. Acontece que um Presidente da República é também um administrador de um património simbólico, função em que, por definição, não tem substituto. Mesmo reconhecendo que a disponibilidade de Marcelo para o diálogo tem contribuído para atenuar algumas formas de crispação na sociedade portuguesa, a sua ânsia de mostrar, precisamente, disponibilidade e compaixão não pode ser reduzida à condição de figurante das notícias.
4. Bem sabemos que, muitas vezes, o dispositivo televisivo — e, mais especificamente, o seu equívoco liberalismo iconográfico — contribui para rasurar as diferenças sociais através de uma homogeneização das suas personagens. Conscientemente ou não, as linguagens televisivas favorecem a ideia simplista de que somos todos iguais perante uma câmara — mais de um século de cinema, de Welles a Godard, ensina-nos que a história das imagens é, muito pelo contrário, um palco de permanentes tensões e contradições em que ninguém se confunde com uma imagem definitiva.
5. A proliferação pública de Marcelo como imagem (bem diferente do que seria uma política elaborada de imagens públicas) só pode ter dois efeitos: diluir qualquer noção de hierarquia figurativa e, nessa medida, banalizar o poder que ele próprio representa. Como esse poder, formalmente, emana de todos nós, corremos o risco de confundir a nossa identidade social com a ubiquidade simbólica do Presidente — essa é, em última instância, uma maneira de desvalorizar todas as imagens, esvaziando o seu papel cognitivo.