A 70ª edição do Festival de Cannes propõe, uma vez mais, uma diluição de "barreiras" entre cinema e televisão, real e virtual — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Abril), com o título 'Foi você que disse "virtual"?'.
A simples lista dos autores a marcar presença na edição nº 70 de Cannes configura uma verdadeira apoteose. Além dos nomes da primeiríssima linha — o austríaco Michael Haneke, o russo Andrei Zvyagintsev, o ucraniano Sergei Loznitsa ou o francês Jacques Doillon —, vai ser possível reencontrar criadores que, com filmes “melhores” ou “piores”, são, de facto, referências incontornáveis nas dinâmicas temáticas e estéticas do cinema contemporâneo. Lembro apenas, entre esses outros, os irmãos americanos Benny e Josh Safdie e o francês Robin Campillo, este argumentista habitual dos filmes de Laurent Cantet (incluindo A Turma, Palma de Ouro de 2008).
Cannes continua a ter esse poder invulgar de encher o espaço mediático do planeta Terra com as imagens da sua passadeira vermelha, sem deixar de conservar um salutar impulso vanguardista (a palavra caiu em desuso, mas não a devemos recear). Por isso mesmo, não será arriscado antecipar que um dos acontecimentos fulcrais do festival deste ano será a apresentação do projecto de realidade virtual de Alejandro G. Iñárritu. Chama-se Carne y Arena e, muito justamente, está a ser promovido como a “primeira instalação de realidade virtual” acolhida pela selecção oficial de Cannes.
Concebida para a Fundação Prada, em Milão, onde estará patente de Junho a Dezembro, Carne y Arena resultou da colaboração de Iñárritu com Emmanuel Lubezki (director de fotografia de vários dos seus filmes, incluindo The Revenant), definindo-se como uma experiência singular de seis minutos e meio, propondo uma visão dos dramas dos refugiados em que se baralham as condições de “sujeito e observador”. Já não será um filme? Provavelmente, não. Mas o século XXI tem-nos ensinado que a história do cinema continua para além dos filmes.