O veterano russo Andrei Konchalovsky está de volta com um filme admirável sobre as memórias do Holocausto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Abril), com o título 'Konchalovsky convoca-nos para os factos e fantasmas da guerra'.
[ 1 ]
O desafio de Paraíso tem tanto de invulgar como de fascinante. Desde logo porque as três personagens que definem as linhas de força da narrativa são complexas, perturbantes e infinitamente humanas, mesmo quando exibem as facetas mais ignóbeis do género humano.
Tudo começa por um colaboracionista francês de nome Jules (Philippe Duquesne) que, à sombra do governo de Vichy, vai administrando as vidas (e as mortes) de muitos judeus com o cinismo de quem cumpre uma “aborrecida” tarefa burocrática. Konchalovsky introduz uma derivação narrativa que, antes de tudo o mais, nos faz sentir que estamos longe dos dispositivos tradicionais do “filme de guerra”: Jules vai surgindo num cenário austero e uniforme, dissertando para a câmara sobre a sua própria experiência de guerra.
Que testemunho é esse? De “onde” nos fala Jules? Responder a tais perguntas seria, no mínimo, não respeitar o direito do espectador a descobrir por si próprio o génio interior da “mise en scène” de Konchalovsky. Digamos apenas que o dispositivo, intensificado pelo belíssimo preto e branco das imagens, se repete com as personagens de Olga (Yuliya Vysotskaya), uma aristocrata russa que ajuda a Resistência francesa a salvar crianças judias, e Helmut (Christian Clauss), um oficial das SS alemães que vai ascendendo na hierarquia num misto de fascínio pela “ideia” nazi e repulsa pelos inequívocos sinais de extermínio dos judeus.
Um dos últimos títulos de Konchalovsky lançado no mercado português, ainda que dos menos brilhantes da sua filmografia, apostava no mesmo tipo de “desvios” em relação às formas correntes de percepção da dinâmica histórica: chamava-se O Círculo do Poder (1991) e centrava-se na insólita personagem do oficial do KGB que se transformou em projeccionista oficial do Kremlin nos anos finais de Estaline. Paraíso prolonga essa vontade, de uma só vez estética e política, de reencontrar os fantasmas da história através da crueza dos factos.