terça-feira, janeiro 03, 2017

No país de Emir Kusturica (1/2)

Emir Kusturica e Monica Bellucci
Emir Kusturica continua a filmar memórias e fantasmas da história dos Balcãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título '“Era uma vez um país" no cinema de Kusturica'.

Nascido em Sarajevo, em 1954, o cineasta Emir Kusturica faz parte de uma geração violentamente marcada pela história atribulada dos Balcãs, em particular pelos eventos dramáticos que envolveram o fim da Jugoslávia, a guerra da Bósnia e a constituição da Bósnia-Herzegovina (na sequência do acordo de Dayton, assinado em Dezembro de 1995). Toda a sua obra, mesmo marcada por altos e baixos, pode ser vista como uma longa reflexão, polvilhada de angústia e paradoxal humor, sobre as convulsões da sua terra natal — o seu novo filme, Na Via Láctea, é mais um cristalino exemplo de tão singular trajectória.
Na origem do projecto, está a curta-metragem Our Life, realizada por Kusturica para Words with Gods (2014), um filme de episódios sobre a pluralidade das religiões (entre outros, nele colaboraram também a indiana Mira Nair, o israelita Amos Gitai e o iraniano Bahman Ghobadi). O próprio Kusturica assumia a personagem de um monge entregue a uma bizarra rotina de transporte de pedras, porventura satisfazendo alguma missão religiosa.
Em Na Via Láctea, reencontramos o monge, de novo interpretado por Kusturica, mas apenas na terceira parte do filme. Antes, ainda em tempo de guerra, ele é um “homem comum”, protagonista de uma peculiar odisseia: primeiro, cumprindo a rotina quotidiana de transportar leite numa zona montanhosa onde há frequentes tiroteios; depois, seduzido por uma mulher italiana (interpretada com calculada ironia por Monica Bellucci) que já foi cortejada por um oficial da SFOR, a força de paz multinacional liderada pela NATO...
Enfim, importa dizer que qualquer resumo que se limite a nomear as muitas “peripécias” do filme (incluindo uma delirante perseguição num campo pejado de minas onde pastam ovelhas...) passará sempre ao lado da sua respiração dramática. Porque, de facto, aquilo que Kusturica procura fazer é tudo menos um tradicional fresco histórico. O que, em qualquer caso, não exclui uma obsessão realista pelo detalhe, em particular na figuração da vida rural. Dir-se-ia que essa promessa de realismo se vai decompondo numa celebração surreal em que, desta vez, tirando partido dos efeitos digitais, o realizador combina os elementos mais insólitos, desde os voos poéticos dos amantes até à cobra gigante que... gosta do leite derramado na estrada.

Duas Palmas de Ouro

Kusturica mantém-se, afinal, fiel a si próprio. Para o confirmarmos, bastará recordar os dois filmes que já lhe valeram outras tantas Palmas de Ouro no Festival de Cannes (a par de autores como Francis Ford Coppola, Michael Haneke ou Ken Loach, ele é dos poucos que já conseguiu essa dupla consagração). Assim, O Pai Foi em Viagens de Negócios (1985) era uma observação clínica da Jugoslávia dos anos 50 e, em particular, da repressão com componentes estalinistas: a crueza dos factos surgia transfigurada e, por assim dizer, poeticamente superada pela vulnerável visão de um adolescente. Depois, Underground (1995) fazia o retrato da turbulenta amizade de dois homens, desde os tempos anteriores à Segunda Guerra Mundial até aos conflitos da década de 90, numa vertigem em que os sonhos e pesadelos conseguiam, por vezes, superar as coisas concretas, aliando vida e morte no espaço mágico do cinema — o seu subtítulo era todo um programa: Era uma Vez um País.
Para descrevermos os ritmos narrativos de Na Via Láctea, a metáfora musical é também, como sempre, irresistível. Desde logo porque sabemos que, na dupla qualidade de guitarrista e vocalista, Kusturica mantém a sua No Smoking Orchestra como uma combinação invulgar de raízes folclóricas com agressivas sonoridades rock e punk. Depois, porque a música deste filme foi composta por Stribor Kusturica, filho do realizador. Em boa verdade, todos os seus filmes questionam o que significa ter uma família e pertencer a um país.