sexta-feira, dezembro 16, 2016

O realismo de Bruno Nogueira

A. A muito celebrada proliferação da comédia em formato stand-up deu origem, em Portugal, a algo semelhante à multiplicação de fadistas (que nasciam debaixo das pedras da calçada, como diziam Os Contemporâneos). A saber: não apenas uma baixa desastrosa da qualidade média dos respectivos intérpretes, como também uma trágica perda de contacto com as matrizes que definem a sua tradição e podem sustentar a sua energia. Na prática, qualquer imitação barata de Amália ou Marceneiro, desde que polvilhada de alguns requebros brasileiros de quinta ordem, é adorada como a quimérica "renovação" do fado; em paralelo, qualquer actor medíocre que ponha um ar gingão e conte meia dúzia de anedotas obscenas corre o risco de ser consagrado como o novo Lenny Bruce...

B. O programa radiofónico de Bruno Nogueira [com João Quadros], Mata-Bicho (Antena 1 e Antena 3), não corresponderá, por certo, a uma superação automática de todo este contexto culturalmente catastrófico, esteticamente indigente e politicamente populista. Nem dele se esperaria, muito menos exigiria, tal proeza. Acontece que a sua paciente atenção às manchetes da actualidade [ouça-se, por exemplo, aqui em baixo, a edição de 29 de Novembro, destacando a morte de Fidel Castro] lhe confere uma vibração realista que tem estado afastada, para não dizer ausente, deste tipo de registo. 


C. Ao contrário do que outras personalidades do mesmo domínio parecem crer, a especificidade do humor — radiofónico, como é o caso, mas também televisivo ou cinematográfico — não nasce de uma banal acumulação de "provocações". O que distingue a possível energia desse humor é a construção de um ponto de vista. E é isso que Bruno Nogueira tem no seu Mata-Bicho. Podemos, naturalmente, concordar ou discordar do que ele diz. Não é essa a questão: só mesmo em Portugal é que há sempre alguns apóstolos da harmonia social que, sempre que conseguem nomear 27 pessoas que ficaram "ofendidas" com alguma prática de comédia, clamam pelo fim da civilização, ao mesmo tempo que se cultiva um silêncio opressivo sobre os horrores quotidianos do Big Brother e seus derivados... Acontece que Bruno Nogueira não utiliza as atribulações do mundo em que vivemos para construir piadas instrumentais que se dissipam no próprio instante em que são proferidas — o humor de Mata-Bicho tem um pensamento por trás. E como sempre acontece, na convicção que a anima, qualquer forma de pensar faz medo. Abençoado medo.