I. Algum cinema português alimenta a ilusão de que possui uma relação com a memória do próprio cinema (português, para começar). De facto, em muitos casos, não há relação — apenas uma sugestão de marketing que se esgota na ilusão pueril de que há um classicismo que todos partilhamos.
II. E se a memória não fosse esse continente parado e disponível que todas as visões historicistas imaginam controlar? E se a memória existisse como uma entidade, não de exposição, mas de resistência? Resistindo ao nosso desejo de apropriação e, desse modo, obrigando à sua invenção.
III. É essa a aposta de Eduardo Brito no breve, mas intenso, Penúmbria [9 minutos, Curtas Vila do Conde]: a invenção de um olhar documental a partir da pura ficção. Ou ainda: a história de um lugar impossível de colocar no mapa, mas persistindo, algures, como um apelo metódico e intenso, numa palavra, sensual.
IV. Que apelo é esse? Pois bem, o de contar histórias, não como um gesto de "reprodução" do mundo, antes como uma aventura em que, ponto por ponto, prédio a prédio, rua a rua, se discute a sua transparência televisiva — à sua maneira, Penúmbria é também um objecto que nos impele a pensar a pobreza de muitas linguagens televisivas.
V. É uma história de amor. De perdição, como devem ser todas as histórias de amor. Mas importa não escrever nada de muito claro sobre isso, quanto mais não seja porque este é também um filme sobre o espectador, confrontado com a sua ânsia de atribuir alguma coerência à profusão de sinais com que o real nos assalta.
VI. Ah, o real... Esse impossível, como dizia o outro. Na verdade, olhamos (isto é, pousamos uma câmara de filmar), escutamos (isto é, apontamos um microfone) e o real que registamos existe também através do que nele se escapa, organizando o filme como pensamento único, todas as vezes refeito pela singularidade de cada espectador.
VII. É sempre gratificante encontrar um filme que resiste a ser resumido, levando-nos a compreender que estamos apenas a começar a contá-lo — e a contar-nos através dele.