A Canção de Lisboa reflecte o renovado triunfo de uma cultura enraizada nas rotinas televisivas do populismo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Julho), com o título 'A cultura dominante'.
Com a estreia de A Canção de Lisboa, chega ao fim a trilogia de “novos clássicos”, produzida por Leonel Vieira, depois de O Pátio das Cantigas e O Leão da Estrela, com realização do próprio, sendo este terceiro título assinado por Pedro Varela. Confirmam-se as directrizes do projecto, a começar pela colagem a estereótipos a meio caminho entre o pitoresco das telenovelas e as degradadas rotinas do stand up. A evocação dos originais, lançados nos anos 30/40, reduz-se a um gadget promocional, aqui e ali “justificado” por um débil trocadilho de diálogo ou pela permanência irrelevante dos nomes das personagens principais.
Relança-se, assim, um enquistamento histórico (do cinema e não só) que reforça o populismo que, a meu ver, reocupou o tecido ideológico da sociedade portuguesa. É certo que A Canção de Lisboa não passa de uma acumulação de situações pobremente caricaturais, sustentadas por uma narrativa à deriva, sempre encenada através de métodos (planificação, iluminação, codificação do trabalho dos actores) que repetem as retóricas da telenovela. Acontece que, implicitamente, o filme consagra a noção cultural (sem aspas: estamos a falar daquela que é, de facto, a cultura dominante) de que há uma ponte “natural” entre o nosso presente e o tempo em que Cottinelli Telmo dirigiu A Canção de Lisboa (1933) [ver uma evocação histórica e crítica de Lauro António]. Nenhum trabalho estético, nenhuma consciência do modo como as nossas linguagens definem a nossa identidade. Desvanece-se tudo o que fazia a singularidade desse tempo remoto (da dinâmica política às marcas do teatro de revista) para triunfar o grau zero do populismo — em boa verdade, nessa formatação de referências, memórias e valores, encontramos a questão central da actual cultura portuguesa, há muito tempo excluída de qualquer debate político.