Christian Bale AMERICAN PSYCHO (2000) |
Os 25 anos do livro American Psycho/Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, motivaram uma nova edição no mercado português — no Diário de Notícias (5 Junho), João Céu e Silva entrevistou o autor; este texto, publicado em paralelo com a entrevista, evoca a respectiva adaptação cinematográfica e outros filmes a que está ligado o nome de Ellis.
Numa entrevista incluída na edição em DVD do filme American Psycho (2000), realizado por Mary Harron a partir do livro de Bret Easton Ellis, Christian Bale apresentava uma sugestiva definição da sua personagem: “Patrick Bateman tem absoluta consciência daquilo que é, sabe muito bem o efeito que provoca em todos os momentos, é esse o seu realismo. Ele é um actor. Normalmente, tenta-se esconder a representação. Neste caso, não fazia mal que eu revelasse a representação — era mesmo essencial para a personagem.”
É essa a raiz mais funda do horror de Bateman. Em boa verdade, não o podemos definir como alguém que passa para o território do pecado através de um gesto de ruptura ou rebeldia; ele é antes o intérprete aplicado de uma violência que, no seu olhar, passou para o lado da inocência. E o que é, para ele, a inocência? Não exactamente a boa moral, mas esse estado de despojamento paródico (será preciso recordar que American Psycho é também uma comédia?) em que o protagonista encara qualquer perspectiva moral como coisa irrelevante — para Bateman, os seus crimes são apenas os gestos necessários para garantir a pureza de uma ordem que ignora os desejos dos outros.
Visão infernal, sem dúvida, que não pode ser desligada da arqueologia social que os romances de Ellis foram elaborando, desde Less Than Zero (Menos que Zero), editado em 1985 e logo adaptado ao cinema em 1987, com realização de Marek Kanievska (lançado entre nós com o título prosaico A Última Viagem em Beverly Hills). Ainda sob o efeito das políticas económicas e sociais dos anos 80 de Ronald Reagan, o autor contemplava o avesso da sua euforia, expondo as mágoas de uma juventude universitária (Ellis tinha 21 anos e era ainda estudante quando o livro surgiu) à deriva num universo em que sexualidade e drogas são apenas os fantasmas de um trágico esvaziamento de identidades.
Embora sem terem sido fenómenos de bilheteira, os filmes baseados em obras de Ellis definem um pequeno território de culto, dir-se-ia uma filmoteca marginal através da qual podemos contemplar a metódica decomposição dos laços sociais de toda uma geração. As Regras da Atracção (1987) e Os Informadores (1994), chegaram ao cinema em 2002 e 2008, respectivamente, sob a direcção de Roger Avary e Gregor Jordan — são crónicas do quotidiano que, mesmo nos seus momentos de maior ironia, deixam um lastro de perturbante realismo.
Ellis será o primeiro a ter consciência das componentes cinematográficas da sua trajectória. Aliás, vale a pena sublinhar o óbvio a propósito de American Psycho (a designação Psicopata Americano, utilizada na tradução do livro, não foi aplicada no lançamento do filme no mercado português). De facto, o título American Psycho envolve uma derivação, ou melhor, um prolongamento simbólico do Psycho (1960), de Alfred Hitchcock. Na visão hitchcockiana do Mal, tal como era encarnado pela personagem de Norman Bates (Anthony Perkins), persistia ainda um laço trágico com a personagem “ausente” da mãe; no caso de Bateman, qualquer fantasma familiar decompôs-se num sistema de vida em que o poder conferido pelo dinheiro é apenas o rosto formal de uma solidão absolutamente trágica.
Tudo isto ecoa em The Canyons (2013), filme tão admirável quanto desconhecido que na maior parte dos mercados, incluindo o português, apenas foi editado em DVD. Escrito por Ellis e realizado por Paul Scharder (argumentista de Taxi Driver, realizador de títulos como American Gigolo ou Cat People), nele encontramos Lindsay Lohan interpretando uma personagem em que não podemos deixar de detectar os ecos simbólicos das convulsões da sua própria existência pessoal. No limite, é um filme sobre uma das chagas sociais do nosso tempo: a instrumentalização mercantil da noção de privacidade. A edição portuguesa ostenta o título O Vale do Pecado, o que não deixa de envolver uma involuntária lição pedagógica.