Rosario Dawson e Chlöe Sevigny (1995) |
O filme Kids, de Larry Clark, fez 20 anos: memórias de um clássico instantâneo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'A herança trágica dos adolescentes de 1995'.
Há dias, no âmbito do Bam Cinema Fest, em Nova Iorque, foi assinalada uma “pequena” efeméride: o filme Kids (entre nós: Miúdos), de Larry Clark, fez vinte anos. Apenas vinte anos, é verdade... Foi um dos grandes acontecimentos do Festival de Cannes de 1995, capaz de afirmar uma consciência realista cuja energia persiste muito para além do contexto em que surgiu.
Larry Clark |
Que está em jogo? Antes do mais, a opção por uma representação da adolescência que recusa, ponto por ponto, as facilidades do naturalismo televisivo (que, entre nós, se consagrou na indigência dramática e narrativa de Morangos com Açúcar e respectivos sucedâneos). Não se trata, entenda-se, de considerar Kids como padrão universal seja do que for — estamos perante o retrato muito particular de um grupo de jovens, em Nova Iorque, em ambiente de grande promiscuidade sexual, num contexto marcado pela epidemia da sida. Trata-se, isso sim, de sublinhar o grau de exigência do realismo da realização de Clark, ancorada no argumento assinado por Harmony Korine (na altura com 22 anos).
Na trajectória de Clark (n. 1943), tratava-se de uma estreia em cinema que, em qualquer caso, não podia ser desligada do seu admirável trabalho no domínio fotográfico. Reflectindo os seus próprios dramas — incluindo a dependência de anfetaminas durante a adolescência —, Clark construíra um espantoso portfolio sobre a sua geração na cidade de Tulsa, Oklahoma, publicado num livro que viria a tornar-se um clássico da fotografia americana (lançado em 1971, com o título Tulsa). Kids correspondia, afinal, à transfiguração cinematográfica desse labor enraizado nas imagens fotográficas.
Escusado será dizer que a visão de Kids repele qualquer exaltação paternalista da adolescência. O filme apresenta-se como a crónica íntima de um espaço em que qualquer nostalgia redentora se revela impossível. Por um lado, o consumo de drogas está instalado em todas as trocas; por outro lado, as relações sexuais proliferam a partir de severas estruturas de poder, quase sempre lideradas pelas personagens masculinas.
E não deixa de ser desconcertante recordar que o ano de lançamento de Kids (1995) foi também o da apoteose de Toy Story, primeira longa-metragem de animação digital. Dir-se-ia que, perante o triunfo da imagem virtual (fascinante, sem dúvida), a crueza do olhar de Clark funcionava como um perturbante contraponto — a sua contundência realista enraíza-se numa atenção metódica ao frémito dos corpos, logo às nuances dos actores.
Kids acabou por legar ao cinema americano uma geração de intérpretes que, por assim dizer, permaneceram numa região ambígua do imaginário cinéfilo: Rosario Dawson e Chloë Sevigny são as actrizes hoje em dia mais conhecidas, Leo Fitzpatrick prossegue uma carreira relativamente discreta e Justin Pierce suicidou-se no ano 2000, contava 25 anos. As duas décadas que nos separam de Kids têm, por isso, o peso de uma herança trágica, mas essencial.