A nova Madame Bovary cinematográfica, com Mia Wasikowska, sabe manter-se fiel ao espírito de Gustave Flaubert — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Junho), com o título 'Sob o signo de Flaubert'.
Digamos que, para além da prosa intoxicante de Gustave Flaubert, Emma Bovary é também um dos mais acarinhados fantasmas da história do cinema. Conhecêmo-la através de emblemáticas adaptações de Jean Renoir (1934, com Valentine Tessier), Vincente Minnelli (1949, com Jennifer Jones) ou Claude Chabrol (1991, com Isabelle Huppert). E pressentimos também o seu assombramento em derivações assinadas por David Lean (A Filha de Ryan, 1970) ou Manoel de Oliveira (Vale Abraão, 1993). A nova Madame Bovary de Sophie Barthes possui o mérito da sobriedade clássica: evita a prestação de vassalagem a qualquer modelo cinematográfico, construindo-se a partir de uma obstinada fidelidade à escrita de Flaubert.
Gustave Flaubert |
Não se trata, entenda-se, de uma fidelidade “factual”. (por exemplo, a personagem de Berthe, filha de Emma e Charles, foi omitida). Se podemos falar de uma fidelidade ao espírito da escrita de Flaubert, é isso, justamente, que aqui encontramos. A começar pela fascinante ambivalência, ao mesmo tempo dramática e moral, que nos leva a sentir a trajectória de Emma como um trágico ziguezague entre as atitudes mais conscientes e um delírio não apenas emocional mas, por assim dizer, para lá das emoções.
Daí a opção, por certo insólita, mas em última análise certeira, por uma actriz como Mia Wasikowska para interpretar Emma. Por um lado, ela possui esse misto de transparência e fragilidade que levou Tim Burton a escolhê-la para a sua Alice no País das Maravilhas (2010); por outro lado, a interpretação de Wasikowska evita qualquer determinismo “psicológico”, respeitando uma aura de mistério em torno dos gestos da personagem, mesmo os que decorrem das rotinas quotidianas. Podemos admitir que Flaubert gostaria dessa arte de dar a ver, preservando as razões do invisível.