ANDRÉ TÉCHINÉ [Foto: Gernhard Kassner / Berlinale] |
Aos 72 anos de idade, com uma obra iniciada em finais dos anos 60, André Téchiné continua a ser um nome fulcral do cinema francês. O seu filme mais recente, O Homem Demasiado Amado, foi o ponto de partida para uma conversa, em exclusivo, para o Diário de Notícias (29 Junho) — esta entrevista foi publicada com o título 'Gosto de filmar com a câmara perto dos corpos'.
O seu filme O Homem Demasiado Amado evoca o célebre “caso Le Roux” que envolveu o desaparecimento de Agnès Le Roux, tendo por pano de fundo uma guerra entre casinos no sul de França. Quem é, realmente, a personagem central? Será Maurice (Guillaume Canet), o homem que trabalha para a mãe de Agnès, suspeito de a matar, ou a própria Agnès (Adèle Haenel), a mulher que o ama?
A personagem central, quer dizer, aquela a que me sinto mais ligado e em função da qual a história se desenvolve, é Agnès. É ela que está no centro de tudo, até porque o seu desaparecimento persiste como um mistério. Mesmo que dela não reste senão uma fotografia ou a voz registada num gravador, é ela o fio condutor, e tanto mais quanto o filme se organiza a partir de factos verídicos. Aliás, ela faz-me pensar numa Adèle H. da Côte d’Azur.
Podemos, então, evocar uma herança de François Truffaut e do seu filme A História de Adèle H. (1975)?
Isso não sei. Em todo o caso, ela é uma personagem apaixonada, com uma ideia fixa, projectada num homem, quase como uma dependência. O que me interessava era esse buraco negro da paixão. Por isso, procurei uma actriz que, além do mais, pudesse sustentar o papel de filha de Catherine Deneuve.
Como foi o trabalho com Adèle Haenel na criação dessa personagem de Agnès?
O perigo era transformar a personagem numa vítima. Ora, Adèle e eu queríamos que Agnès fosse uma mulher desportiva, atlética, como uma nadadora dos países de Leste. Vêmo-la várias vezes a nadar no filme e há nela qualquer coisa de veterana da guerra em África — aliás, ela regressou de África e comporta-se como uma aventureira, em clara oposição ao meio luxuoso e sofisticado da mãe. Além disso, é uma personagem que chora muito, com lágrimas muito infantis, mais do que uma mulher ou um homem costumam chorar. Trabalhámos muito a questão das lágrimas e também o momento decisivo em que a vemos numa dança africana, procurando construir uma Agnès algo selvagem.
Talvez por isso, também o texto que ela escreve chega-nos, não através da sua voz em off, mas com Adèle/Agnès presente na imagem.
Sem dúvida. Queríamos evitar qualquer atitude de piedade do espectador em relação a ela, contrariando qualquer hipótese de sentimentalismo. E Adèle empresta imensa energia e raiva a esse texto.
Será que essas características permitem inscrever Adèle Haenel numa certa tradição, a que talvez pudéssemos chamar melodramática, de actrizes francesas?
Realmente, não sei. O filme passa-se na década de 70, um tempo muito marcado por Isabelle Adjani. E ao filmar a cena da chegada dela ao aeroporto, confesso que pensei em Adjani, com quem tive o prazer de fazer dois filmes (Barocco/Escândalo de Primeira Página e As Irmãs Brontë, respectivamente de 1976 e 1979). O importante era construir uma personagem de grande apaixonada, cheia de raiva, nada piegas.
O filme anuncia-se sobre um homem demasiado amado, mas é ela que ama demais.
Absolutamente. Ela ama demais, numa vertigem que vai até à loucura do seu misterioso desaparecimento. A permanência desse mistério, mesmo havendo suspeitas, era aquilo que me interessava. Devo dizer que os títulos em que, inicialmente, pensei eram “Suspeita” e “A Sombra de uma Dúvida”...
Mas já estavam tomados por Hitchcock...
É verdade [riso]. Interessava-me também, aliás, a parte final em que, de repente, tudo o que foi vivido em termos afectivos se transforma numa questão jurídica.
Em paralelo ao movimento dos afectos, não haverá também todo um processo de circulação de dinheiro?
Sem dúvida. Podemos até considerar que o filme é sobre essas três personagens — Maurice, Agnès e a sua mãe —, envolvidas em relações de dominação no centro das quais está sempre o dinheiro.
Nesse contexto, a presença de Catherine Deneuve, com quem tem trabalhado desde O Segredo do Amor (1981), é necessariamente diferente.
Sim, até porque ela encarna um outro tipo de personagem, de um universo de ostentação que ficou conhecido como o “bling bling” da Côte d’Azur. Ela interpreta uma mulher imperial, autoritária, ex-modelo da casa Balenciaga, que todos os dias muda de toilette, de maneira ostentatória. Tem o comportamento de uma mulher de negócios, muito característico de Nice, que em todo o caso adora a sua filha. Em boa verdade, era tudo novo para Catherine e para mim, mas é isso mesmo que nos interessa quando trabalhamos juntos: aventuras que nos conduzam a territórios que não conhecemos.