Com a despedida de David Letterman na apresentação de The Late Show, conclui-se um capítulo fulcral da história da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Maio), com o título 'A herança de Letterman'.
Começou a 30 de Agosto de 1993. Terminou a semana passada, no dia 20 de Maio de 2015: David Letterman apresentou pela derradeira vez The Late Show, na CBS [video: a despedida + Foo Fighters]. Escusado será dizer que, seja qual for o ângulo de abordagem de tão longa performance, estamos perante um capítulo essencial, não apenas da televisão nos EUA, mas, afinal, de toda a moderna história televisiva.
Moderna? O adjectivo envolve alguma desconcertante ironia. De facto, o dispositivo de comunicação de que Letterman foi um caso de excelência — a personalização da apresentação como ponto de partida para a construção do espectáculo em televisão — constitui o mais primitivo, e também o mais universal, dos modelos televisivos. Tão universal e “naturalizado” no dia a dia da comunicação audiovisual que poderia mesmo atrair uma interrogação didáctica. A saber: assim como a tradição dominante no cinema estabelece que as personagens não devem olhar para a câmara, porque é que o espaço televisivo se baseia, no essencial, em figuras que... olham para a câmara?
Letterman foi um símbolo, não apenas desse olhar virtual para o espectador, mas também da responsabilidade que tal labor pode envolver. Responsabilidade? A palavra nem sempre é muito querida no espaço televisivo, uma vez que há toda uma ideologia grosseira (mas muito poderosa) que faz crer que quando o riso está envolvido, a questão fulcral da responsabilidade do comunicador em relação ao espectador não existe.
Bem pelo contrário, importa dizer. Porquê? Porque personalidades como Letterman sempre funcionaram como espelhos ambivalentes, ora didácticos, ora perversos, das muitas componentes da actualidade artística, social e política. A sua herança não se resume (muito longe disso!...) à acumulação de anedotas mais ou menos obscenas, ditas em tom de “stand up” requentado. Ele legou-nos o gosto de conversar, observar e pensar, quer dizer, a noção muito clara de que a televisão não é feita de compartimentos estanques — à sua maneira, é uma forma de realismo.