terça-feira, maio 19, 2015

"Alphaville" faz 50 anos

Eddie Constantine + Anna Karina
Nos filmes cinquentenários do ano corrente, Alphaville, de Jean-Luc Godard, constitui um caso à parte: uma ficção científica feita a partir de linguagens do realismo a preto e branco — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Maio), com o título 'Meio século de memórias de Alphaville'.

Um lugar-comum muito popular insiste em proclamar que os críticos de cinema não gostam de filmes “de efeitos especiais”... Não valerá a pena gastar muito tempo com a sua desmontagem: os efeitos especiais não definem nenhum género específico e, além do mais, a sua associação a filmes de super-heróis das últimas duas décadas decorre de uma profunda ignorância histórica, quanto mais não seja porque, graças a Georges Méliès, a prática dos efeitos especiais tem mais de um século.
A própria consideração dos efeitos especiais como “geradores” de fantástico é ainda mais simplista. De facto, nenhuma nave espacial a atravessar o ecrã nem nenhum corpo digital mais ou menos monstruoso garantem qualquer “transcendência” narrativa.
Vem, por isso, a propósito citar um filme fascinante que aposta na criação de um ambiente fantástico a partir de técnicas tradicionalmente associadas ao mais estrito realismo. Está a passar meio século sobre o seu lançamento: Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard, é esse filme que nos projecta numa sociedade futura, com um sistema de controle dos cidadãos que, agora, seremos levados a classificar de ditadura mediática [Criterion].
JLG
Um dado essencial na concepção formal do filme foi mesmo a ausência de efeitos especiais. Dito de outro modo: a criação desse mundo futurista decorre de uma opção eminentemente realista. Como? Godard impôs ao seu director de fotografia, o genial Raoul Coutard, que filmasse sem iluminação complementar, quer dizer, tirando partido apenas das fontes de luz que existiam em cada cenário, exterior ou interior.
Havia uma razão técnica muito particular para o desafio de Godard. Assim, estavam a ser generalizadas películas a preto e branco cada vez mais sensíveis, permitindo registos (fotográficos e cinematográficos) em ambientes de fraca intensidade luminosa. A aposta consistiu em testar até ao limite as possibilidades dessas películas que permitiam até filmar dois rostos a partir do acender de um fósforo (coisa que, no filme, acontece mesmo).
Com Eddie Constantine no papel de Lemmy Caution, o agente do FBI criado pelo escritor Peter Cheyney, Alphaville evolui como um desconcertante filme “noir”. Por um lado, todos os ambientes são típicos de um período de acentuada renovação arquitectónica da cidade de Paris (também reflectido na obra-prima de Jacques Tati, Playtime, lançada dois anos mais tarde); por outro lado, a densidade e os contrastes das imagens geram uma sensação de ambígua proximidade carnal, sem que a história perca a sua dimensão de ficção científica.
No centro de tudo isto está Anna Karina, interpretando Natacha von Braun, uma mulher que ignora as significações da palavra “amor” e que Godard, em alguns planos que ganharam valor iconográfico, mostra a ler o livro de poemas Capitale de la Douleur, do surrealista Paul Éluard. Em última instância, Alphaville não é sobre o futuro, antes celebra os poderes intemporais da poesia. Não poderia ser mais especial.