Marcelo Rebelo de Sousa comenta os candidatos à Presidência da República ou é, ele próprio, um candidato? Ou será comentador e candidato? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (17 Abril), com o título 'Comentador ou candidato?'.
Há qualquer coisa de profundamente incómodo em deparar, semana após semana, com Marcelo Rebelo de Sousa (TVI) a comentar os candidatos, anunciados ou hipotéticos, à Presidência da República. Porque das duas uma: ou o comentador é um potencial candidato, ou não é. Se é, em nome de que deontologia está a exercer esse poder discursivo? Se não é, porque é que não afirma, de forma inequívoca e definitiva, a sua exterioridade em relação ao processo?
Não se trata de transformar a sua figura mediática em pretexto de (mais) uma algazarra “social”, com ou sem redes, envolvendo reguladores e regulamentos — já basta o que basta. Seja como for, também não pretendo esconder que considero o discurso televisivo de Marcelo Rebelo de Sousa uma cristalização retórica de um entendimento rudimentar da política, reduzindo todas as eventuais clivagens ideológicas a peripécias mais ou menos frívolas e fulanizadas.
O que está em causa é de outra natureza. Acontece que a postura televisiva de Marcelo Rebelo de Sousa não passa de uma variante da imensa pobreza cultural que encontramos à direita e à esquerda. A começar pela patética ausência de pensamento sobre a própria inscrição da política em televisão.
Se tivéssemos uma classe política genuinamente disponível para pensar o imenso poder inerente a alguns dispositivos televisivos, há muito que todos os partidos — a começar pelo partido a que pertence o comentador — teriam suscitado uma salutar reflexão sobre as intervenções de alguém que é parte interessada (ou, pelo menos, não explicitamente excluída) de um processo eleitoral que passou a ser tema constante dos seus comentários.
No limite, a situação criada pode atrair a mais perversa das leituras: a de que a condição de comentador televisivo pode constituir um elemento específico de uma estratégia para chegar à Presidência da República. A acontecer, isso quererá dizer que passámos a viver num país em que a televisão se substituiu à própria República.