Chegaram às salas mais dois filmes marcados pelas heranças traumáticas, individuais e colectivas, da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril), com o título 'A guerra para além do filme de guerra'.
Durante décadas, em particular na Europa e na América, o padrão dominante do filme de guerra foi o do filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais do que isso: numa generalização necessariamente redutora, mas sugestiva, podemos considerar que o filme de guerra foi também aquele que, directa ou implicitamente, contrapôs os cenários de combate às convulsões da retaguarda.
Duas das estreias desta semana, ambas provenientes da produção alemã — Phoenix, de Christian Petzold, e Labirinto de Mentiras, de Giullio Ricciarelli —, são sintomas esclarecedores de como esse padrão tem vindo a ser, não exactamente contestado, mas em boa verdade ignorado. Aliás, não é verdade que até mesmo Sacanas sem Lei (2009), de Quentin Tarantino, envolvia a ideia de uma decomposição interna do próprio género, agora conduzido a um registo em que tragédia e paródia podem ter os mesmos direitos narrativos?
O caso de Phoenix distingue-se pela perturbação inerente aos factos que encena. Estamos perante a saga de uma mulher, Nelly (a notável Nina Hoss), sobrevivente de um campo de concentração: operada ao rosto, adquire feições que a transformam numa estranha para o próprio marido (Ronald Zehrfeld), situação tanto mais tensa quanto terá sido ele o responsável pela denúncia que levou os nazis a prendê-la. Aquilo que começa por ser uma crónica histórica sobre o período inicial da reconstrução da Alemanha transforma-se numa deambulação intimista em que, escusado será sublinhá-lo, o sentimento da fragilidade dos corpos contamina todos os seres e todas as relações — no limite, a verdade de um corpo, da sua história, da sua irredutibilidade, pode ser insustentável.
Algo de semelhante acontece em Labirinto de Mentiras, por certo mais tradicional na sua construção, mas não menos inovador na abordagem de um contexto marcado pelo peso de um silêncio mentiroso. Falamos de quê? Pois bem, de uma Alemanha em finais da década de 50 em que prolifera um terrível desconhecimento da dimensão dos crimes nazis e, em particular, da existência e do modo de funcionamento dos campos de concentração. O filme possui uma estrutura em parte devedora dos modelos tradicionais de inquérito policial, uma vez que a personagem central, Johann Radmann, é um procurador de justiça que se envolve num processo dantesco de reunião de provas do Holocausto, sobretudo do que aconteceu no campo de Auschwitz. Curiosamente, o excelente intérprete de Radmann, Alexander Fehling, assumia também um pequeno papel em Sacanas sem Lei.
É certo que o mercado cinematográfico nem sempre tem sabido trabalhar filmes com estas características, nem mesmo tirando partido da coincidência (?) das respectivas estreias. Seja como for, o espectador atento poderá compreender que estamos perante obras que pertencem a uma “tendência” que liga, por exemplo, o admirável Lore (2012), de Cate Shortland, sobre a sobrevivência dos filhos de um oficial nazi, a Suite Francesa, de Saul Dibb, a adaptação do livro de Irene Némirovsky que chegou há uma semana às salas.
Para lá das suas diferenças, todos estes filmes integram uma vontade de realismo que aponta, no essencial, para uma revalorização dramática das personagens. Trata-se de representar cada ser humano como uma presença irredutível a qualquer cliché “ideológico” ou “psicológico”. E é significativo que tudo isso aconteça através de uma revalorização do trabalho dos actores, tanto mais importante quanto já não encontramos heróis redentores, mas sim figuras errando pela crueza da própria história.