Há filmes condenados a contar a história do seu falhanço: Amor Acidental, de David O. Russell (aliás, de Stephen Greene...) é um desses filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril), com o título 'A comédia assinada por um cineasta que nunca existiu'.
É bem verdade que a proliferação de histórias mais ou menos adolescentes, com personagens patetas e patéticas a debitar gags obscenos, não tem ajudado muito ao prestígio de alguma comédia americana. Dir-se-ia que Amor Acidental poderia ser uma hipótese para tentar contrariar esse estilo (?), talvez devolvendo o género a um misto de observação social e crueza moral que, idealmente, podemos associar à riquíssima herança de um mestre como Billy Wilder (1906-2002).
Esta é a história de uma Alice (Jessica Biel) que acede a um bizarro país das maravilhas. Isto porque um dia é vítima do mais insólito dos acidentes: uma pistola eléctrica das que se usam para colocar pregos dispara na direcção da sua cabeça. Simplificando, digamos que acontecem duas coisas igualmente dramáticas (ou talvez não): por um lado, ela não tem um seguro de saúde que permita custear a operação para retirar o prego; por outro lado, o seu cérebro começa a revelar alguns funcionamentos “desviantes”, em particular no domínio sexual...
Compreende-se que David O. Russell se tenha interessado pelas potencialidades mais ou menos burlescas desta odisseia. Afinal de contas, tanto no puro drama (The Fighter-Último Round, 2010) como na farsa política (Golpada Americana, 2013), ele tem sido um paciente e sagaz analista de microcosmos que reflectem as convulsões de uma América enredada nos valores da sua própria mitologia — neste caso, a aventura mental de Alice é mesmo uma porta aberta para a contemplação de uma pequena comunidade agitada pelos seus fantasmas...
É ou podia ser. De facto, tudo correu mal na rodagem de Amor Acidental (que começou por se chamar Nailed, aludindo ao prego espetado na cabeça de Alice). As primeiras filmagens datam mesmo de 2008, vindo a ser interrompidas por problemas de financiamento nada mais nada menos que nove vezes. A certa altura, a Screen Actors Guild pronunciou-se mesmo oficialmente, recomendando ao elenco — que, além de Biel, inclui nomes como Jake Gyllenhaal, James Mardsen, Catherine Keener e Tracy Morgan — que abandonasse o projecto.
Resultado prático: Amor Acidental surge assinado por um cineasta que nunca existiu, Stephen Greene (pseudónimo escolhido pelo desiludido David O. Russell). Mesmo com alguns momentos em que os actores conseguem tirar bom partido do absurdo cómico (em particular, o magnífico Tracy Morgan, nosso conhecido da série televisiva 30 Rock), os resultados práticos reflectem o caos, já não da comédia, mas apenas de uma produção sem eira nem beira.
Para a história do cinema “sem autor”, a assinatura de Stephen Greene fica, assim, como uma variante do clássico (!) Alan Smithee, nome tradicionalmente usado em Hollywood para os projectos abandonados, ou não reconhecidos, pelos respectivos realizadores. Uma das últimas proezas de Smithee tinha sido a versão remontada para televisão de Heat – Cidade sob Pressão (1995); neste caso, o original de Michael Mann existe... e recomenda-se.