A capa do primeiro número da revista de Cristina Ferreira, Cristina, não foi tema da actualidade política, nem sequer assunto convocado pelos respectivos comentadores. Et pour cause...
Na verdade, estamos perante um dos mais puros — e, há que sublinhá-lo, mais transparentes — gestos políticos que, em tempos recentes, foram assumidos no contexto português: a reunião de uma figura dominadora das audiências televisivas com um símbolo duradouro da própria política enquanto matéria televisiva corresponde, afinal, à abertura oficiosa da campanha para a eleição do próximo Presidente da República.
Na verdade, estamos perante um dos mais puros — e, há que sublinhá-lo, mais transparentes — gestos políticos que, em tempos recentes, foram assumidos no contexto português: a reunião de uma figura dominadora das audiências televisivas com um símbolo duradouro da própria política enquanto matéria televisiva corresponde, afinal, à abertura oficiosa da campanha para a eleição do próximo Presidente da República.
E isto por três razões fundamentais:
1) — Com o triunfo de uma cultura televisiva cuja agressividade se define contra todas as outras (literária, cinematográfica, religiosa, etc.), os enunciados políticos, entre outros, passaram a circular como efeitos instrumentais dos respectivos valores: Cristina é o símbolo mais forte dessa cultura que se consagra na alegria, compulsiva e universalista, dos "famosos"; por sua vez, Marcelo domina como ninguém o estilo de redução da vida política a uma estética de fulanizações, estilo que, como é óbvio, ele próprio consagrou e tem vindo a apurar.
2) — A denegação em que todos os potenciais candidatos (incluindo Marcelo, claro) se têm refugiado em relação à assunção de candidaturas pode ser definida como o tema fantasmático desta capa. Porquê? Porque o perverso jogo eleitoral de afirmações obsessivamente travestidas de negativismo abre espaço para que cada um desses candidatos se exponha ao eleitorado através da linguagem que passou a deter o mais forte poder social — entenda-se: a linguagem televisiva. Estranhamente ou não, Marcelo é o único que, até agora, entendeu a lógica de tal sistema mediático. Ao lado de Cristina, Marcelo consegue, sem esforço nem contradição, reforçar a própria redundância simbólica que alimenta o seu discurso: "Sou da política enquanto dispositivo de televisão e, mais do que isso, convivo com quem está na linha da frente do mercado televisivo". O título — em sintonia com Marcelo — constitui, por certo, uma elaborada proeza do marketing tele-cultural, marketing que passou a ser a força mais contundente, raramente contestada ou tão só questionada, de organização do imaginário social português.
3) — Através da reunião Marcelo/Cristina, o candidato a Presidente consegue gelar qualquer hipótese de demarcação crítica dos outros potenciais candidatos, ainda menos de qualquer força político-partidária. Primeiro, porque o imaginário da compulsiva solidariedade afectiva que alimenta Cristina (cujas boas intenções não estão, naturalmente, em causa) rechaça como corpo estranho — entenda-se: exterior à política — qualquer hipótese de leitura crítica que, para além das singularidades individuais, arrisque questionar os valores televisivos dominantes. Segundo, porque a esmagadora maioria das personalidades e forças da nossa cena política, de todas as direitas e de todas as esquerdas, se tem revelado dramaticamente incapaz da formulação de qualquer reticência, mesmo a mais discreta, em relação à formatação de comportamentos & pensamentos gerada pela cultura televisiva dominante — esta demissão crítica constitui mesmo o núcleo de uma trágica debilidade de pensamento. Que o próximo Presidente da República, seja ele quem for, venha a ser eleito no interior dessa debilidade, eis uma tristeza que nunca poderá figurar na capa de Cristina.