Um pequeno grande acontecimento: Gett: O Processo de Viviane Amsalem encena, com rigor e contundência, um divórcio em Israel — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 março), com o título 'A tragédia íntima de um divórcio em cenário israelita'.
Recentemente apresentado na Judaica 2015 (Mostra de Cinema e Cultura), Gett: O Processo de Viviane Amsalem é um daqueles filmes que, na sua peculiar intensidade e subtileza, nos aconselha a mais serena humildade. Trata-se, realmente, de um confronto com um universo cuja complexidade simbólica e afectiva não pode — e, sobretudo, não deve — ser reduzida a uma curiosidade mais ou menos pitoresca, proveniente de outros “costumes”.
Que está, então, em jogo? Nada mais nada menos que um processo de divórcio (“gett”) em Israel. Viviane Amsalem é uma mulher que vive há vários anos separada do marido, embora lutando ainda pela obtenção do divórcio. Pela conjugação da lógica da lei com a força da tradição, de facto tal só poderá acontecer se o marido, Shimon, lhe conceder o respectivo direito — em termos práticos, Viviane e Shimon vão protagonizar um dramático confronto, sob a égide do Tribunal Rabínico.
E se é verdade que qualquer tentativa de sobreposição dos acontecimentos a padrões mais próximos da nossa experiência social parecem superficiais e condenados à irrisão, não é menos verdade que há no filme uma visão de tal modo minuciosa de gestos, palavras e emoções que, em última análise, lhe empresta uma genuína dimensão universal. Gett: O Processo de Viviane Amsalem é, afinal, o reencontro com a tragédia íntima da lei e, nessa medida, um estudo cáustico sobre a gélida diferença entre a idealização das relações e a descarnada verdade dos desejos individuais. Isto, claro, num contexto em que, em nome da tradição, a mulher surge cruelmente desqualificada.
Podemos resumir o impacto do filme através da dilacerada personagem de Viviane, interpretada pela prodigiosa Ronit Elzabetz (vimo-la, por exemplo, como protagonista de Cinzas e Sangue, título de 2009 assinado por Fanny Ardant). Aliás, ela partilha com o seu irmão, Shlomi Elzabetz, o argumento e a realização, criando um universo de insólita teatralidade em que a claustrofobia do espaço corresponde a uma espécie de delírio implacável do tempo — até onde, em nome da pureza da lei (masculina), poderá ser conduzida a ilusão de que o amor é legalmente reformável?
Reencontramos, assim, um cinema cuja depuração formal visa a avaliação do poder imenso das palavras: Viviane e Shimon vivem o desagregar da sua relação num equilíbrio instável criado e, de alguma maneira, sustentado pelas palavras que se dizem em nome da lei e também pelas que, face à insuficiência da lei, são silenciadas.
Estreado na edição de 2014 da Quinzena dos Realizadores, em Cannes, Gett: O Processo de Viviane Amsalem corresponde mesmo a um modelo de cinema realista em que o reconhecimento desses impasses da comunicação humana conduz a uma admirável capacidade de escuta (em sentido literal e simbólico). E se ainda há valores que, realmente, transcendem fronteiras, então importa sublinhar que estamos perante um olhar cinematográfico genuinamente humanista.