terça-feira, março 17, 2015

Maysles + Stones

David Maysles, Mick Jagger, Albert Maysles e Charlie Watts
1969
Recentemente falecido, Albert Maysles é uma personalidade fulcral na história do moderno documentarismo americano — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Março), com o título 'Albert Maysles ou a fé na realidade'.

Em finais de 2006, quando dirigiu o filme-concerto Shine a Light, com os Rolling Stones, Martin Scorsese teve ao seu dispor nada mais nada menos que 19 operadores de câmara — e um deles foi Albert Maysles, o lendário documentarista cujo falecimento, aos 88 anos de idade, ocorreu no passado dia 5.
O convite de Scorsese para Maysles integrar a sua equipa envolvia uma sentida homenagem a alguém que, juntamente com o irmão David Maysles (1931-1987), tinha marcado de forma indelével a história do moderno documentarismo. E desde logo porque os irmãos Maysles são os autores de Gimme Shelter (1970), porventura o mais mítico filme-concerto de toda a história do cinema, registando a performance dos Rolling Stones em Altamonte, Califórnia (no dia 6 de Dezembro de 1969), evento marcado por acontecimentos trágicos — incluindo o assassinato de um espectador —, muitas vezes referido como o fim simbólico das ilusões libertárias da década de 60.
Albert Maysles
(1926-2015)
Se há maneira didáctica de resumir o trabalho de Albert Maysles, antes e depois da morte do irmão, será através da imensa diversidade dos seus temas. Na sua vasta filmografia, encontramos, por exemplo: reportagens com cineastas (Orson Welles in Spain, 1966) ou artistas plásticos (Christo’s Valley Curtain, 1976, nomeado para o Oscar de melhor curta-metragem); retratos de figuras dos bastidores da política (Grey Gardens, 1975, sobre uma tia e uma prima de Jacqueline Kennedy); digressões pelo mundo da música (Horowitz Plays Mozart, 1987) ou do desporto (Os Campeões do Boxe, 1996, sobre a rivalidade entre Muhammad Ali e George Foreman). Em Outubro de 2014, o Festival de Nova Iorque mostrara Iris, sobre a decoradora Iris Apfle, figura emblemática da moda nova-iorquina, um dos derradeiros trabalhos de Albert Maysles (há projectos em que ele ainda colaborou, nomeadamente um filme sobre Keith Haring, que permanecem por estrear).
A herança dos Maysles envolve uma crítica implícita a todas as formas de reportagem, mais ou menos ligadas a componentes televisivas, em que se dispensa a atenção à complexidade dos acontecimentos, privilegiando antes a imagem sensacionalista ou o efémero soundbyte. No seu site oficial, Albert Maysles publicou uma espécie de nota de intenções em que começa por definir a sua atitude enquanto cineasta: “Como documentarista, coloco o meu destino e a minha fé na realidade”.
Entenda-se: tal atitude, e a fortíssima crença que nela está envolvida, não corresponde à consagração de um qualquer espontaneísmo mais ou menos irresponsável. Nada disso. Albert Maysles era um apaixonado pela infinita pluralidade dos acontecimentos. As suas sugestões para os documentaristas envolvem a ideia de que é na realidade filmada que se podem encontrar as próprias soluções narrativas: “Há uma relação entre a realidade e a verdade — é preciso mantermo-nos fiéis a ambas”. É ele mesmo que evoca um belo axioma de Orson Welles: “A câmara de um operador deve ter por trás da sua objectiva o olhar de um poeta”.